André Bueno

 

A CHINA PELO OLHAR DE BRASILEIROS: 1880-1990


 

Essa é uma versão revista e atualizada do artigo ‘Viajantes brasileiros na China’, publicado em 2013. Naquele breve ensaio, analisei as principais obras dos viajantes-estudiosos brasileiros que foram à China do final do século 19 ao longo do século 20, e seu legado para a construção do conhecimento sinológico no Brasil. Antes do advento da internet e da globalização mundial, a China permanecia um mundo estranho e distante no imaginário dos brasileiros. Sem iniciativas acadêmicas relevantes, o conhecimento sobre essa civilização vinha, pois, da iniciativa de solitários aventureiros e diplomatas, cuja produção bibliográfica analisaremos novamente aqui. Contudo, de lá pra cá, uma série de informações importantes veio à luz, mostrando que as relações entre Brasil e China são muito mais profícuas do que usualmente investigamos na academia.

O tema pode ser abordado por várias vertentes diferentes; mas quero focar, aqui, nos intelectuais e estudiosos que foram até a China no período descrito, construindo um conjunto de fontes pouco explorado em nossa historiografia. Disso resultam novas inserções e comentários que faremos ao longo do texto. E agora, que retomamos uma iniciativa sinológica em nosso país, muito ainda precisa ser feito para criarmos uma tradição e dar-lhe continuidade como campo de estudo.

O século 20 conheceu um grupo de observadores interessados na China, pelas mais diversas razões. Creio que seria interessante comentar um pouco sobre o trabalho destes viajantes, de origens e interesses variados, que deram um testemunho original, em português, das transformações pelas quais a civilização asiática passou neste período. Decidi optar somente pelos brasileiros, já que a produção portuguesa é bem mais abundante neste sentido, até por sua presença em Macau. Além disso, um rastreamento desses trabalhos mostra que, apesar do apoio inexistente da academia, iniciativas individuais conseguiram construir e fornecer para nós um conjunto de informações substanciais - ao menos para a história moderna da China - que podemos utilizar de modo seguro na pesquisa. Por fim, são esses relatos que criariam o que chamamos de uma ‘visão modelar’ [Bueno, 2018] – a ideia da China como um modelo possível de comparação para o desenvolvimento do Brasil – que acompanharam nossa história ao longo do mesmo século 20, e deixaram impressões importantes em nosso imaginário.

 

O Final do século 19

É preciso, antes de tudo, informar ao leitor que Brasil e China estiveram intimamente ligados na época do império português. Antes de sermos independentes, pessoas, plantas e ideias circulavam nessa fantástica que unia Rio de Janeiro e Salvador com Goa, Macau e Luanda. Um fértil processo de trocas se deu aí [Freyre, 2003; Leite, 1999 e Antony, 2013], e muitos brasileiros, servindo à coroa portuguesa, passearam pelas bandas asiáticas. Carlos Francisco Moura [2014] nos dá uma excelente visão desses personagens, tais como Lucas de José Alvarenga e José Guimarães e Freitas, nos legaram importantes livros de história sobre a cidade de Macau [Alvarenga, 1828; Freitas, 1828].

Após a independência, porém, serão outras as questões a permear nossa relação com a China. Durante a existência no Brasil imperial, a vinda de trabalhadores chineses para o país foi constantemente aventada, a princípio para substituir a mão de obra escravizada pelo trabalho livre. O combate a esse projeto, ferozmente repudiado por diversos intelectuais brasileiros, deu origem a chamada ‘questão chinesa’, que arrastou-se por décadas no país [Lesser, 2005 e Czepula, 2020]. Ao mesmo tempo, contudo, iniciativas sinológicas surgiram no âmbito do governo, promovendo os primeiros estudos brasileiros sobre a civilização chinesa.

Foi o cientista Francisco Almeida, em 1878, que nos deu uma primeira visão direta – ainda que rápida - da China. Ele se dirigiu ao Japão para acompanhar a passagem do planeta Vênus, que ocorreria naquele ano, e realizou uma longa viagem, descrita em seu livro ‘Da França ao Japão: Narração de viagem e descrição histórica, usos e costumes dos habitantes da China, do Japão e de outros países da Ásia’ [1879], no qual nos fornece relatos importantes das culturas asiáticas - mas sem esquecer da questão da emigração chinesa. Em Cingapura, por exemplo, ele encontra um brasileiro que se afirmava cônsul defendendo o tráfico de chineses para o Brasil em um esquema similar ao da escravidão, o que causou repulsa ao autor. Na China, ele se impressiona com a decadência de Macau, o desenvolvimento rápido de Hong Kong e a aversão dos chineses aos cristãos. Almeida reproduz um cartaz chinês que incitava ataques aos cristãos, mas apresenta a transcrição dos textos ao contrário, o que grande parte de seus leitores ignora. No mesmo ano, o intelectual Salvador Mendonça publicou o livro A imigração chinesa, em que discutia se valia à pena substituir escravos e migrantes europeus por colonos chineses [os coolies]. Embora seu parecer fosse favorável, Salvador não esteve na China, valendo-se de informações indiretas de uma ampla gama de fontes. Seu estudo foi técnico e objetivado, não fornecendo um panorama aprofundado da cultura chinesa, mas proporcionando um quadro rido sobre os debates da época.

Em 1879, o governo brasileiro decidiu que iria enviar uma missão diplomática para a China, com o intuito de fomentar um tratado de amizade e comércio [e por tabela, negociar a vinda dos chineses]. A missão alcançou a China no ano seguinte, e seus resultados [bem com dificuldades e impedimentos] foram publicados posteriormente [CHDD, 2012]. Foi Henrique Lisboa, um dos diplomatas brasileiros encarregados de discutir a imigração chinesa e a constituição de relações oficiais entre nosso país e o império celeste, que lançou a primeira obra sinológica brasileira de fato. Ele acompanhou a missão, e como resultado de sua experiência, publicou o livro ‘A China e os chins’, datado de 1888. Esta é nossa primeira produção sobre a civilização chinesa, recolhido diretamente na fonte, analisando aspectos diversos de sua cultura e história. Lisboa fez um estudo aprofundado e sensível dessa cultura, conseguindo superar em muitos aspectos o orientalismo eurocêntrico vigente na época; foi também o primeiro adido na China [1879 a 1883] e Japão [1897-1903], tendo se tornado o embaixador brasileiro nesse último. Ele acompanhou um dos períodos mais difíceis da história chinesa, permeado por conflitos externos com as potências europeias, com o Japão, e uma sociedade minada internamente pela decadência política e econômica da Dinastia Manchu [1644 a 1911]. Henrique conseguiu, ainda, a façanha de permanecer em seu cargo, e sobreviver à transição do governo imperial para a República no Brasil. Em 1894, ele publicou também ‘Os Chins de Tetartos: continuação d’a China e os Chins’, no qual continuava a discutir as vantagens e desvantagens da importação de mão de obra chinesa, algumas questões relativas a sua recepção e a opção da imigração japonesa – que se viria a concretizar posteriormente, como ocorrera nos Estados Unidos e na Europa. 

Essa era uma questão corrente no Brasil da virada dos séculos 19-20.  Havia um intenso debate sobre a substituição da mão-de-obra escravizada, que se polarizava em torno da vinda de europeus. A opção de ‘importação’ dos asiáticos não era bem vista por alguns setores da sociedade, essencialmente preocupados com a questão racial e a miscigenação. O embrião de políticas eugênicas estava sendo amplamente discutido.  Por fim, a questão foi gradativamente deixada de lado, e a grande massa de imigrantes asiáticos acabou vindo de fato do Japão – com a supervisão direta de Henrique Lisboa –, constituindo a segunda maior colônia nipônica no mundo. O governo brasileiro possuía um interesse maior pelo Japão e sua experiência modernizadora da Era Meiji, deixando praticamente de lado na China, o que se refletiu diretamente na produção bibliográfica sinológica nacional.

 

Já no século 20

Tal como o Brasil muda profundamente na virada do século, assim também foi com a China. Nosso país virou república em 1889; a China, em 1911. Nesse meio tempo, alguns Intelectuais brasileiros continuavam atentos ao desenrolar da história chinesa. Foi o caso do diplomata Luis Guimarães Filho [1911] e dos jornalistas Garibaldi Dantas [1937] e Nelson Tabajara de Oliveira [1933], que mantinham os leitores brasileiros informados; e apesar de distante, a China nunca desapareceu de nosso campo visual. Outro autor, o militar brasileiro Lima Figueiredo [1941], foi acompanhar a guerra sino-japonesa de 1936. Servindo como adido no exército japonês, Figueiredo não apenas observou, mas meteu-se em combate contra os chineses, e ganhou uma medalha de honra nipônica. Outro autor de relevo nesse cenário é Geraldo de Souza [1943 e 1944], médico que observou e analisou a medicina chinesa, tornando-se um dos seus primeiros defensores em todo o Ocidente.

A virada da segunda guerra mundial mudou totalmente esse cenário. O Brasil passou a apoiar a China, e as observações de Meira Penna e Labienno dos Santos serviram para mudar nossas impressões sobre o país e sua marcha para uma civilização ‘ocidentalizada’ – ou, ao menos, era o que se esperava. Em especial, o livro de Labienno, ‘Visões da China’, abordava a cultura do país e seus problemas históricos mais recentes. Sua viagem ao país se deu antes da conflagração da 2a guerra, mas o livro foi um importante contraponto a questão japonesa que se desenvolveu no Brasil durante o conflito. Uma grande quantidade de propaganda foi feita pelo governo Vargas contra o Japão, nesta época, criando uma teoria conspiratória sobre o desejo dos mesmos em dominarem o nosso país. Cabia aos chineses, governados pelo partido nacionalista [Guomindang], representarem o "lado bom" dos asiáticos, e nisso os intelectuais brasileiros se alinhavam com o pensamento norte-americano. Na década de 50, Labienno ainda atuava junto à China, possuindo uma experiência sinológica praticamente única no Brasil da época.

Novamente, porém, a situação da China havia mudado radicalmente. Os comunistas assumiram o poder em 1949, representando a hegemonia do socialismo nos maiores países do mundo [a China em população, e a URSS em extensão]. Quanto ao Brasil, o fim da ditadura Varguista trouxera a luz o debate entre esquerda e direita, entre o conservadorismo e as possibilidades de modernidade. Na incerteza quanto ao modelo político que se seguiria, a China comunista parecia um lugar interessante - não pela ideologia em si, mas pelos resultados que vinham sendo obtidos na recuperação do país. A década de 50 parecia extremamente promissora para eles. Por conta disso, esta época nos oferece quatro relatos bastante diferentes sobre a China, cuja qualidade e conteúdo variam intensamente em profundidade e perspectiva.

O primeiro deles, de Osny Duarte Pereira, apresentado em ‘A China de hoje’ e ‘Nós e a China’ [ambos de 1956] compõe-se de dois estudos aguçados e detalhados, que analisam a história, as condições de crescimento chinesas, a mentalidade cultural e ainda, suas possíveis implicações com a nossa sociedade. O estudo de Osny, juiz e oficial diplomático, é uma pesquisa séria sobre o futuro da China e as possíveis posições que o Brasil deveria tomar diante dela. Podemos supor que Osny Pereira inaugurou no Brasil, indiretamente, uma linha de debate desenvolvimentista que coloca nosso país em analogia à China. Sua obra questionava: partindo da ideia de que a China fora arrasada pelas invasões imperialistas no século 19 e pelas duas grandes guerras mundiais, quais seriam então os segredos de sua recuperação econômica tão rápida? A esquerda brasileira tomaria a revolução chinesa, muitas vezes, como um referencial – embora deixasse de lado os amplos aspectos culturais que separavam as duas sociedades, e que fizeram bastante diferença no sucesso da retomada chinesa. Osny Duarte conseguiu captar algo dessa sutileza, o que torna seu livro especial.

Já ‘China sem muralhas’ [1956], de Jurema Finamour, é um trabalho relativamente imediatista e superficial, sumamente descritivo, apresentando cenários da vida chinesa presenciados pela escritora. Finamour era uma renomada jornalista e comunista declarada; porém, seu relato autobiográfico sobre a experiência desastrosa como secretária de Pablo Neruda é que lhe angariou sucesso. Seu texto sobre a China, pois, se prende a certos aspectos que destacam o sucesso do comunismo como modelo social, político e econômico. Ela se encanta, por exemplo, com as revolucionárias leis chinesas sobre o casamento e os direitos da mulher, basicamente inexistentes antes da revolução comunista. Esse dado é importante, pois Finamour buscava mostrar tanto as benesses do sistema comunista chinês, quanto o atraso da mentalidade social brasileira em relação ao papel do feminino. Lembremos: no Brasil, a década de 50 assiste o sucesso de Nelson Rodrigues e suas tragédias sociais. Éramos um país essencialmente ‘conservador’, e o contraponto dessa questão – assim como de muitas outras – apresentado pelos chineses, era entendido como uma das razões de sua recuperação bem sucedida. O livro conta ainda com um prefácio de Jorge Amado, que destaca a obra por seu valor literário.

‘Ásia maior’, de Maria Martins [1958] constitui um duplo de diário de viagem e cultura chinesa. Mrs. Martins, esposa de um diplomata, traça um panorama chinês em que funde seus diálogos com o presidente Mao [que ela se orgulha em mostrar nas fotos] com ensaios sobre literatura, teatro, pensamento e política bem escritos e razoavelmente informativos, embora um tanto genéricos. O prefácio assinado por Oswaldo Aranha dava um claro certificado de garantia ao livro. De qualquer forma, é um trabalho atento sobre a época, e um manual de introdução aos aspectos gerais da cultura chinesa. Ainda assim, ele não era capaz de proporcionar elementos suficientes para uma compreensão mais aprofundada da civilização chinesa.

Por fim, Adolpho Bezerra de Menezes, em seu livro ‘Brasil e o Mundo Asio-Africano’ [1956] aborda, de modo quase profético, a necessidade da construção de uma política externa brasileira autônoma, pós-colonial, atenta as dinâmicas Afro-Asiáticas. O autor acompanhou eventos significativos da história asiática, como a Conferência de Bandung [1955], e viajou por diversas partes da Ásia. Seu livro reconstrói a história moderna asiática, numa perspectiva historicamente nova para o Brasil da época. A preocupação, como de muitos outros especialistas e diplomatas, era de adquirir conhecimento sobre a Ásia e África, e reposicionar o Brasil como uma potência mundial. Sua abordagem analisava, em conjunto, a questão do Oriente – sem, no entanto, descambar para um Orientalismo superficial. Seu diagnóstico era preciso: sem uma verdadeira escola de relações internacionais, o país ficaria a deriva no panorama externo. A clareza com que Adolpho expunha as dificuldades próprias do Brasil em construir, para si, uma tradição em estudos exteriores não-europeus, é acachapante. Praticamente sessenta anos depois, a situação não melhorou muito, e os estudiosos de Ásia continuam a ser vistos como um bando de excêntricos dentro da academia.

 

Taiwan

Um relato de primeira mão sobre Taiwan surgiu nesta mesma época. Ricardo Joppert, que visitou a ilha a convite das autoridades locais, escreveu e publicou o seu ‘A China é sempre Formosa’ em 1958, com apenas 16 anos, representando a perspectiva da China nacionalista. Joppert fora um prodígio em assuntos chineses desde a infância, e um dos únicos a praticamente vencer todas as etapas do programa televisivo O Céu é o Limite, respondendo a perguntas sobre a China. Em Taiwan, Joppert testemunhou as mudanças em direção a uma China moderna e capitalista, mas que continuava consciente de seu passado. Um de seus encontros mais marcantes é com um dos últimos mandarins aprovados nos Exames Imperiais, uma verdadeira testemunha da história. Ele viria a ser primeiro sinólogo de formação brasileiro, e posteriormente visitou, também, a China continental. Depois disso, ele publicou inúmeros trabalhos sobre arte e história chinesa, tais como ‘A porcelana chinesa’, ‘Samadhi em verde e azul’ e ‘O alicerce cultural da China’, continuando, até os dias de hoje, em atividade. Sua produção é reconhecida no exterior, incluindo-o num restrito grupo de sinólogos conceituados em diversas instituições europeias e chinesas. Joppert trouxe para o Brasil uma interpretação profunda do pensamento filosófico e estético chinês, que durante décadas não pode ser devidamente vislumbrado por uma academia eminentemente eurocentrada.

 

Perto da Revolução Cultural

A viagem de João Goulart em 1961 parecia aproximar Brasil e China de forma definitiva, mas o golpe de 1964 solapou as iniciativas sinológicas nascentes – e continuamos a depender de estudos independentes. Mesmo assim, Pimentel Gomes lançou, em 1962, ‘China – uma nova Civilização’, no qual propunha o modelo chinês como inspirador para as questões brasileiras. Em sentido bastante diverso, Jorge Maia foi um dos últimos viajantes a estar em contato com a China antes da revolução cultural, ocorrida em 1966, que praticamente fechou o país aos estrangeiros. Seu livro ‘Confúcio e matéria plástica’ [1964] é um estudo bastante interessante e lúcido sobre a questão colonial na Ásia, constituindo uma pesquisa séria e distante das problemáticas ideológicas do período. Organizado em diversos ensaios, que variam desde passagens de sua viagem pela Ásia até reflexões sobre a situação da China, ‘Confúcio e matéria plástica’ continua sendo um bom livro para perceber certos aspectos do colonialismo e sua recepção na Ásia, notadamente a China. Nessa época, um pequeno lapso temporal se estabelece entre este livro e as produções seguintes, em função do difícil e complexo período pelo qual a China passaria. A revolução cultural vedou os acessos ao país. A China tornara-se um mistério para os estrangeiros, e as especulações em torno de uma revolução interna eram grandes. O mundo ainda vislumbrava, tenso, a escalada do conflito no Vietnã. Com tantas interrupções e desvios, a sinologia no Brasil parecia um exercício acadêmico excêntrico. Somente uns poucos adeptos do comunismo dedicavam-se ao estudo da revolução chinesa e seu modelo político.

Contudo, a reviravolta da retomada de relações diplomáticas com a China, em 1974, reaqueceu o interesse dos intelectuais brasileiros. Oscar Araripe, em seu ‘China hoje – o pragmatismo possível’ [1974] realizou um estudo atualizado da situação chinesa antes, tentando pensar suas opções futuras.

 

O Retorno pós-Mao

Após a morte de Mao Zedong em 1976, e com a flexibilização das relações internacionais, dois estudos brasileiros sobre a China representam uma retomada significativa do interesse pelo conhecimento sobre o país. O primeiro deles é de Heloneida Studart, intelectual brasileira que viajou para a China em 1978 e em 1982 publicou o seu ‘China - o nordeste que deu certo’. O título já traz em si a proposta do livro - demonstrar como o modelo chinês poderia ser utilizado para solucionar problemas sociais e econômicos do Brasil, através de uma apresentação bem organizada e engajada do sistema comunista. O livro narra algumas dessas bem sucedidas experiências [minimizando ou mesmo esquecendo os insucessos], retomando uma linha de raciocínio já presente nos trabalhos de Osny Duarte e Jurema Finamour, de contrapor China e Brasil. Todavia, esse discurso vinha, inadvertidamente, carregado de conceitos e juízos de valor bastante problemáticos. Um deles, por exemplo, era a reafirmação da ideia do Nordeste como uma região atrasada. Ignorando as possibilidades de separar o conjunto da região Nordeste do Brasil em realidades distintas, ou mesmo de observar as disparidades e a pobreza da sociedade chinesa, o livro propunha dois quadros genéricos – tanto para a China como o Brasil – que se apresentavam, como possibilidade de um projeto, de forma idealista. Por outro lado, Studart deu uma importância crucial às conquistas sociais femininas na China, que revelavam o quanto esse país superara nos problemas de igualdade de gênero e oportunidades de trabalho.

Já Humberto Braga, em 1979, lançou o seu ‘Oriente vermelho’, que trabalha com uma análise mais cultural da sociedade chinesa. Como o próprio autor coloca no livro, ele era psicólogo de carreira, e seu interesse pela mentalidade do povo chinês fica evidenciado ao longo do texto. Mas este livro é uma pesquisa arguta, dedicada e muito bem informada sobre a história chinesa, demonstrando igualmente um estudo sério, que muito valoriza o olhar decorrente da viagem. O livro de Humberto tem uma propriedade significativa: ele transita entre o passado e o presente chinês, buscando muitas vezes em suas raízes históricas e culturais os fundamentos das atitudes sociais modernas. Esse é um ponto fundamental: é impossível compreender a China sem conhecer, minimamente, suas tradições e formas de pensamento. Um problema recorrente na maioria dos estudos atuais sobre a China é de se aterem somente ao período contemporâneo, ignorando os pressupostos culturais que atuam sobre a sociedade chinesa. Essa é a razão fundamental do contínuo desconhecimento e incompreensão que nossos ‘especialistas’ possuem sobre a China; sem o passado chinês, é impossível conhecer-lhes os alicerces da civilização. Braga, de certo modo, compreendeu essa questão, realizando um livro rico, equilibrado e acessível.

Um comentário à parte deve ser feito sobre o livro de Henfil, ‘Henfil na China’ [1980]. Cartunista e intelectual - mas antes de tudo, um gozador e observador irônico das coisas - Henfil faz, com bastante humor, um relato de sua viagem à China. O texto é para ser saboreado, com certeza, mas apresenta também uma capacidade crítica fabulosa, para aqueles que conseguirem sair de sua superfície. Henfil percebeu as contradições do sistema, sabia identificar os pontos de tensão do discurso chinês, e uma análise geral sobre seu livro o classifica como uma interessante fonte sobre o país.

O desenrolar da década de 80 trouxe outras preocupações para o mundo, eclipsando os olhares sobre a China. Esta voltaria realmente à baila em 1989, quando o incidente na Praça da Paz celestial mostrou que o país não estava disposto a ruir nem deixar de ser comunista, como havia acontecido com a União Soviética. Estas transformações foram acompanhadas de perto pelas tevês do mundo, e o Brasil não tomou nenhuma posição oficial a respeito. Um autor fundamental desse período é Wladimir Pomar [1987], que acompanhou as transformações chinesas em uma série de obras, buscando explicá-las ao público e tentando compreender essas mudanças de paradigmas a luz das teorias socialistas. Quase ao mesmo tempo, outro autor, Jesualdo Correia, percorreu vários países asiáticos por uma década, e recontou suas experiências no livro ‘Trilhas do Oriente’, lançado em 1998. Distanciado das questões políticas da época, Jesualdo é um erudito, com vasta experiência no orientalismo, e provavelmente um dos últimos e legítimos viajantes brasileiros nas paragens asiáticas antes desses tempos recentes. Ele testemunhou a passagem de uma Ásia antiga, historicamente tumultuada, mas que ao mesmo tempo, preservava algumas de suas tradições e modos de vida que hoje já não se encontram mais facilmente.

Mas a China do final do início dos nãos 1990 já era outra. Em 1994, Carlos Drumond visitou a China para observar as transformações pelas quais ela tinha passado, e descobriu um outro mundo bem diferente daquele usualmente propagandeado. Em seu ‘Viagem a grande China’, Drumond fez uma apresentação consciente do país, estabelece pontes entre a cultura passada e a situação atual, mostra suas possibilidade futuras e consegue escapar aos clichês que geralmente envolvem o tom jornalístico sobre o país. O timing de Drummond foi preciso: ele acompanhou a década na qual a China transformou-se, modernizou-se e despontou novamente no mercado mundial. Num curto espaço de tempo, ela saiu da misantropia e do desconhecimento para retomar seu papel de potência mundial. A década seguinte, e a primeira do século 21, seriam o período dourado chinês. Outro diplomata, Vamireh Chacon, visitou o mundo de fala portuguesa na Ásia e publicou, em 1995, o seu ‘Goa e Macau’, constituindo um trabalho interessante sobre as perspectivas daquela futura ex-colônia portuguesa. O interesse da obra e o tom neutro - necessário ao exercício de sua profissão - dão-nos uma boa visão da situação chinesa, embora o foco principal seja o enfraquecimento da Lusofonia nestas regiões, condição aparentemente de difícil solução. Chacon estava no palco do fim de uma Era – a do ‘ultramar português’ – e assistiu o apagar das luzes da presença colonial europeia na Ásia. Nessa época, a China já escancarara suas portas para o novo mundo globalizado, e acadêmicos de todo o mundo fluíram para lá. Nesse sentido, os relatos e estudos desses viajantes já haviam cumprido o seu papel, e uma nova fase de contatos se iniciou, mudando o perfil das novas produções sobre a China.

 

Para agora

No contexto atual, em que a China virou um objeto de moda e existem milhares de especialistas de última hora sobre esta civilização, qualquer estudo sobre o país precisa ser profundo, articulado e bem estruturado para ter alguma relevância. Num momento em que a globalização permite a absoluta relativização das fronteiras, o romantismo das viagens antigas se perdeu, bem como o ineditismo dos estudos. O fenômeno da globalização afetou a face das culturas mundiais. A própria China apresenta, hoje, opções turísticas que permitem a qualquer visitante estrangeiro sentir certa naturalidade com seu próprio mundo cultural. Os desafios brasileiros são outros, portanto. Construir uma escola sinológica, capaz de preparar especialistas para lidar com essa civilização, deve-se constituir uma prioridade. Do mesmo modo, o estudo da civilização chinesa, em seus fundamentos, exige um conhecimento de língua e história que são raríssimos no país. Sem isso, e preso aos imediatismos economicistas, o Brasil continuará perdendo em todos os sentidos. Assim, pois, aqueles materiais que não forem estudos sérios e bem construídos hão de sumir; e o resto tratar-se-á de meros relatos pessoais e vazios, que já não atraem senão consumidores do mesmo tipo.

Para isso, porém, o Brasil precisa entender a necessidade de compreender, histórica e culturalmente, a China. Vimos que grande parte dos relatos provinham de diplomatas e eruditos solitários, sem que qualquer esforço sistemático e significativo fosse feito pela academia para construir uma tradição sinológica. Na atual conjuntura, em que o governo deveria pretender o fortalecimento de uma aliança geopolítica com a China [ou ao menos entendê-la], é indispensável a formação de especialistas nesse campo. Há um longo caminho a percorrer, e tanto a nossa universidade quanto as nossas instituições políticas saíram atrasadas nessa corrida.

 

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9 comentários:

  1. Caro André Bueno,

    O seu texto é maravilhoso e permite-nos compreender bem a relação sino-brasileira e a falta de uma tradição sinológica no Brasil.
    Por experiência própria, deparei-me com várias dificuldades ao estudar a China no Brasil durante o meu doutoramento - falta de materiais, de eventos onde pudesse apresentar ou mesmo publicar a minha pesquisa. No entanto, começaram a surgir, nos últimos anos, mais interesse por se estudar a China. Como refere no seu texto, surgiram, assim, "especialistas de última hora", mas, pergunto se essa realidade não pode ser vista como uma oportunidade para se criar um maior interesse em aprofundar os estudos sobre a China?

    Daniele Prozczinski

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    1. Cara Daniele, tudo bem?
      Obrigado pela pergunta! =) Penso que toda abertura para o estudo é sempre válida, e pode atrair uma atenção realmente interessada no estudo da China. Minha preocupação é, apenas, com estudos oportunistas; observo uma quantidade enorme de 'estudiosos da China' que apareceram do nada, e reproduzem erros básicos em suas narrativas. Minha preocupação é que esse patamar de superficialidade se torne a referência de nível, o que, inevitavelmente, pode nos nivelar por baixo nos estudos chineses...Mas sendo bem sincero: sim, aberturas são sempre bem vindas! É necessário aproveitar o momento e tentar instituir um estudo sinológico mais sistematizado.
      saudações,
      André =)

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  2. Thiago Rodrigues Ferreira7 de outubro de 2020 às 20:10

    Thiago Rodrigues Ferreira

    Muito bom o texto, prazerosa leitura. Gostaria de saber como a mídia pode ter influenciado (ou influenciou) a visão sobre a China?

    Thiago Rodrigues Ferreira

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  3. Olá, professor André.

    Tudo bem? Gostei muito do seu texto! Fiquei com uma dúvida sobre sua afirmação de que o Ricardo Joppert foi o primeiro sinólogo de formação brasileiro. O que você quer dizer exatamente com isso? Está se referindo simplesmente à formação acadêmica ou mais às especificidades da produção intelectual dele? Se for esse o caso, qual mudança ele representa nos estudos chineses produzidos no Brasil? Obrigado!

    Abraços,
    Edelson Costa Parnov

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    1. Caro Edelson,
      obrigado pela pergunta! Joppert foi o primeiro a ter uma formação acadêmica específica em Sinologia, realizada na França e Taiwan. Sua obra, igualmente, é toda voltada para a compreensão da arte, da estética e do pensamento chinês. Quanto a sua contribuição, penso que ela ainda está para ser devidamente apreciada. O domínio conceitual do pensamento chinês que ele traz em suas obras dificilmente é encontrado em obras brasileiras. Eu diria até que ele estabeleceu um patamar de qualidade e conhecimento, que a maior parte dos estudiosos de China no Brasil, hoje, não alcançam, em termos de domínio de saberes tradicionais.
      obrigado! =)
      grande abraço
      André

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  4. Olá, André!
    Proveitoso demais o seu artigo a respeito da China entre nós! Quisera metade dos brasileiros saberem disso! Muitos torcem o nariz para certas produções chinesas, contudo, a cada estamos vendo que os chineses têm se reerguido! E o seu texto é muito preciso para aprofundarmos...por fim aos estereótipos e estreitarmos mais ainda os laços orientais!!!

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  5. Boa noite. ótimo seu texto, seus apontamentos sobre a China são muito importantes. A China e o Brasil são países com vários laços econômicos, que são importantes para nosso país. Por que no Brasil existem pessoas que se referem aos chineses como se fossem inimigos?

    Inês Valéria Antoczecen

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    1. Cara Inês,
      obrigado pela pergunta.
      Isso se deve, com certeza, ao não superado orientalismo sinofóbico que vige na cultura brasileira desde o século 19, e que se acentuou nos tempos da Guerra fria. Aprendemos a temer o desconhecido, e principalmente, não compreendemos como uma civilização se desenvolveu tão rápido - enquanto o o Brasil, que não foi invadido nem destruído tem dificuldades reincidentes de decolar no plano das nações. Ainda não conseguimos transpor, para o plano da educação, uma visão mais cosmopolita. Os viajantes brasileiros que foram até a China buscavam outro modelo, que não sei se seria o mais adequado também... mas ao menos, serviria para ter uma outra visão - positiva - dessa civilização.
      saudações,
      André

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