André Felipe Costa da Luz

 

O MITO DE TANGUN SOB A PERSPECTIVA NORTE-COREANA

 

Introdução

O povo coreano constitui uma das formações étnicas mais antigas da terra, com origens que remontam ao período Neolítico. Passada a Idade da Pedra e chegada a Idade do Bronze, é quando se inicia a epopeia dessa civilização, tendo como mito fundador a narrativa em torno de um rei de origem divina. É por volta do terceiro milênio a.C. que se localiza o marco zero do mito de Tangun, aquele que, segundo a versão mais popular do mito, seria o responsável pela fundação do primeiro Estado coreano: o Império Choson, também comumente chamado de Choson Antigo ou Coreia Antiga, para evitar confusão com a Dinastia Choson, iniciada em 1392 d.C.

A trajetória de Tangun consiste, indiscutivelmente, no mito originário de todo o povo coreano, porém, a narrativa passou por mudanças e por diferentes formas de interpretação conforme a Coreia avançou por diferentes momentos do seu desenvolvimento histórico, percorrendo um trajeto de seguidos conflitos entre reinos, quedas de dinastias e agressões estrangeiras.

A anexação da Península ao Império Japonês, o mais fatídico episódio da milenar existência coreana, durando de 1910 até 1945, fez com que o mito originário fosse deturpado como parte do esforço dos japoneses de “niponizar” os coreanos. Após a divisão do território em duas repúblicas separadas pelo paralelo 38, a epopeia de Tangun passa a receber contornos distintos conforme subimos ao descemos pela Península. Na República da Coreia (vulgarmente chamada de Coreia do Sul), o mito de Tangun continua permeando o imaginário do país, porém, a narrativa dominante na historiografia sul-coreana é a que apresenta o mito originário como exatamente isso: um mito, apenas. Radicalmente diferente e pouquíssimo conhecida é a abordagem levada a cabo pelos intelectuais da República Popular Democrática da Coreia (sempre caricaturizada como Coreia do Norte), que afirmam categoricamente que, longe de consistir “apenas” em um mito originário, Tangun existiu enquanto homem de carne e osso e também como legítimo fundador da nação coreana. A razão de ser do presente artigo é justamente analisar a revolucionária perspectiva norte-coreana em torno de toda essa questão.

 

O patriarca ancestral da Terra do Calmo Amanhecer

O Samguk Yusa (livro, ao que tudo indica, de autoria de monges chineses, responsável por compilar as principais lendas coreanas até o período dos Três Reinos) relata a origem de Tangun da seguinte forma: 

“Naqueles dias viviam na mesma caverna uma ursa e uma tigresa. Elas rezaram para Hwanung (o rei que havia descido dos céus) pedindo que fossem abençoadas com encarnações em forma de ser humano. O rei ficou com pena e deu para cada uma delas uma porção de artemísia e alho, dizendo: ‘se vocês comerem essa comida sagrada e não verem a luz do sol durante 100 dias, vocês se tornarão seres humanos.’ A ursa e a tigresa pegaram o alimento, comeram e se retiraram para a caverna. Em 21 dias, a ursa, que havia seguido fielmente as instruções do rei, se tornou uma mulher. Porém, a tigresa, que havia desobedecido, permaneceu em sua forma original. A mulher-ursa não conseguiu encontrar marido, então orou sob o sândalo para ser abençoada com um filho. Hwanung ouvir suas preces e se casou com ela. Ela engravidou e deu à luz um menino que foi chamado de Tangun Wanggom, o Rei do Sândalo.” [Illyon, 1972, p. 37 apud Cummings, 2005, p. 21-22, tradução nossa]   

 

Representação de Tangun, ao lado da ursa e da tigresa, ao fundo, o Monte Paektu (e sua caldeira vulcânica), local de nascimento do patriarca coreano, segundo o mito. Fonte: https://revistakoreain.com.br/wp-content/uploads/2016/10/f8b7493d0c62aa325098bdcc03539cee.jpg

 

A partir de tal narrativa, o mito de Tangun se converteu em um aspecto central da identidade originária coreana, porém, segundo a historiografia ocidental e sul-coreana, a carência de documentação escrita no que diz respeito a Península durante o período antes de Cristo, bem como o fato dos chineses terem se encarregado de registrar boa parte da documentação oriunda de tal espaço de tempo, dificultou e praticamente impossibilitou que, até meados do século XX, intelectuais empreendessem esforços de folego no sentido de se aprofundar na investigação em torno de Tangun, visando, para além da narrativa mítica, uma abordagem realmente científica e criteriosa, o que acabou por possibilitar ressignificações no enredo, tal como fizeram os japoneses, que levaram adiante esforços no sentido de se apropriar do mito originário do povo coreano, de uma forma que, sob o slogan de que o Japão e a Coreia formavam uma única entidade, fosse possível fundamentar, a partir da reescrita da história nacional, um único ponto de partida para ambos os povos, isso, é claro, sempre a partir da diminuição do protagonismo coreano. O militante anarquista Shin Chae-ho, em sua Declaração da Revolução Coreana conta que, por exemplo, os livros didáticos de História da Coreia reproduziam uma versão fabricada que afirmava que Tangun era irmão de Susano’onomikoto, o Deus japonês do mar e das tempestades. [Chae-ho, 2018, p. 244]

Porém, mesmo com os esforços da opressão colonial, a lenda de Tangun continuava a ressoar entre os coreanos. Kim Il Sung, militante comunista e principal liderança no processo de libertação nacional contra o imperialismo japonês, lembra, em uma passagem de suas memórias, de quando se encontrava em meio ao processo de luta armada e, acampados na região de Jindao, observavam a vida de coreanos exilados extremamente pobres que ali viviam e, mesmo diante da escassez de comida, tinham como passatempo sentar e contar a história de Tangun. [Sung, 1994, p. 138] A militância política desenvolvida por Kim Il Sung desde a sua adolescência contribuíram para que ele despertasse desde cedo para a necessidade de preservação da identidade nacional e patrimônio cultural coreano, algo que, posteriormente, será determinante para o seu ímpeto de esclarecer aquilo que ele acreditava ser o real caráter do Rei Tangun.

Após a derrota dos invasores japoneses em 1945, a Coreia viveria um intenso, porém curto período de celebração da independência. O entusiasmo nacional seria interrompido pela repartição do país em duas zonas de influência e, em 1948, em consequência da hostil movimentação estadunidense (que proclama eleições unilaterais na porção sul da Península) a separação formal em duas repúblicas distintas. A situação ainda chegaria ao extremo em 1950, com o deflagrar da Guerra da Coreia, uma guerra de destruição em massa que não deixou pedra sobre pedra no país, em especial na região norte.

A divisão do país em República Popular Democrática da Coreia e República da Coreia e seus sistemas socioeconômicos antagônicos, também vai impactar na narrativa e, acima de tudo, na concepção de Tangun enquanto mito fundador. Um só povo, agora vivendo a tragédia da divisão em dois Estados distintos e cada um com sua respectiva abordagem em torno de suas origens.

 

Tangun: mito e/ou homem?

A biografia oficial de Kim Il Sung estabelece que:

“Em janeiro de 1993, afirmando que a história do Rei Tangun e da Coreia Antiga, que tem sido distorcida pela política do imperialismo japonês de obliterar a cultura nacional coreana, deveria ser corrigida, ele indiciou a direção e o método de escavação da tumba do Rei Tangun, localizada no Condado de Kangdong. Como resultado, os restos mortais do Rei e as relíquias relacionadas a ele foram desenterradas em fevereiro de 1993. Os instrumentos mais modernos disponíveis confirmaram que os restos mortais possuíam 5.011 anos, comprovando cientificamente o fato de que o Rei Tangun, que era considerado uma figura mitológica, foi um ser humano real e que o mesmo fundou o primeiro estado da nação coreana, cuja capital é Pyongyang, estabelecendo a cidade como local de nascimento do país e Rei Tangun como seu fundador. Em setembro de 1993, Kim Il Sung realizou uma inspeção pessoal no local onde o mausoléu do Rei seria reconstruído e fixou o mesmo ao pé do Monte Taebak, no Condado de Kangdong. [...] Sob a cuidadosa orientação de Kim Jong Il, a tumba do Rei Tangun foi reconstruída como um imponente mausoléu no início de outubro de 1994, tal qual um tesouro nacional a ser guardado para a posterioridade e como uma monumental estrutura da era do Partido do Trabalho da Coreia.” [KIM... 2001, p. 304-305, tradução nossa]

Em 26 de novembro de 1993, em meio a tensão gerada com os Estados Unidos, por conta do desenvolvimento do programa nuclear coreano, a Korean Central News Agency - KCNA, veículo de comunicação oficial da República Popular Democrática da Coreia, emitiu uma nota onde anunciava publicamente o achado dos restos mortais de Tangun. A nota afirmava que fundação de Choson, primeiro Estado coreano, foi um fator decisivo em benefício da unidade nacional e formação da nação. Segundo a notícia, a nota a descoberta configurava um momento marcando para a formação do país, país esse constituído por um povo de caráter homogêneo, herdeiro do mesmo sangue e cultura.

 

Mausoléu do Rei Tangun, reconstruído entre 1993 e 1994, localizado do Condado de Kangdong, República Popular Democrática da Coreia. Uma tumba em homenagem ao Rei já havia sido erguida na década de 30 do mesmo século, porém, acabou por ser destruída pelos ocupantes japoneses.

Fonte: https://revistakoreain.com.br/wp-content/uploads/2016/10/4367618-The-reconstructed-historical-site-of-the-Dangun-Mausoleum-North-Korea-1.jpg

 

Em 1994, ainda sob o entusiasmo da descoberta e para evitar especulações em torno da veracidade dos achados, a Academia de Ciências Sociais da República Popular Democrática da Coreia elabora um livro que coleta toda a documentação e evidências, incluindo fotos da reconstrução da ossada, dentre outros achados, que serviram para amparar as descobertas anunciadas. O livro, intitulado Tangun Founder-King Of Korea, que reúne tratados de diversos historiadores, cientistas sociais, arqueólogos e linguistas norte-coreanos, foi traduzido e publicado em vários idiomas pela editora oficial de línguas estrangeiras do governo. O livro demonstra que, ao contrário do que pregava a narrativa dominante da historiografia ocidental, os coreanos do Reiono de Koguryo, por exemplo, já cultuavam Tangun enquanto não apenas uma lenda, mas como um ser humano real. A obra também detalha, em mais de um artigo, o trabalho arqueológico de recuperação e analise dos ossos. Ao final, o livro acaba por demonstrar com riqueza de detalhes toda a base argumentativa que levou os pesquisadores coreanos a concluírem que Tangun, para além de seu escopo mitológico, existiu enquanto ser humano de carne e osso. Ainda assim, o livro demonstra que os coreanos concebem Tangun enquanto mito e homem, tendo em vista que seu aspecto mitológico foi fundamental para o desenvolvimento cultural da Coreia, bem como o seu legado enquanto homem foi responsável por um processo de desenvolvimento calcado na unidade nacional e modernização, algo que, o povo da República Popular Democrática da Coreia, do alto do seu caráter altamente nacionalista, não poderia deixar passar em branco:

“A razão pela qual Tangun é o primogênito da nação coreana é, antes de tudo, por ter sido uma pessoa distinta que, enquanto fundador da Coreia antiga, o primeiro Estado da nossa nação, proveu o nosso povo com uma civilização avançada e conferiu glória a nossa nação. [...] Há 5000 anos, enquanto a maior parte do mundo ainda se encontrava em um estado primitivo e subdesenvolvido, Tangun transformou a Coreia antiga em um estado civilizacional progressista, destacando-se enquanto um homem de importância história para nossa nação. Tangun desenvolveu o sistema da Coreia antiga e promoveu desenvolvimento econômico e cultural e assim estabeleceu a solida fundação da Coreia antiga.” [Jong, 1994, p. 132, tradução nossa]

Enquanto isso, apesar de todos os esforços dos intelectuais da porção setentrional da Península, a comunidade científica sul-coreana desdenhou do progresso sinalizado por seus pares do norte. Enquanto os norte-coreanos realizaram o esforço de produzir a obra anteriormente mencionada, o Ministério da Educação da República da Coreia produziu, no ano seguinte, um manual intitulado Historia de Corea, destinado ao público exterior e distribuindo em todo o mundo, cuja enção que faz ao Rei Tangum se limita à um paragrafo de pouco mais de 3 linhas. [HISTORIA... 1995, p. 18]

 

Conclusão

Uma vez analisadas as questões aqui colocadas, pode constatar que, para a República Popular Democrática da Coreia, um país em permanente estado de guerra, sitiado e sancionado por todos os lados, recorrer ao mito originário possui, acima de tudo, um caráter de resistência. Os norte-coreanos reverenciam sua identidade nacional como a principal maneira de lidar com a divisão e com a presença estrangeira em seu próprio território, de forma que a missão de resgatar seus próprios valores nacionais acaba por consistir em uma arma contra as ameaças estrangeiras que tanto já castigaram a Península Coreana.

O Juche, ideologia oficial do Estado norte-coreano, idealizada por Kim Il Sung e desenvolvida por Kim Jong Il, marcada pelos pressupostos máximos de independência e autossuficiência, para além de um forte apelo nacionalista de caráter popular, também é um fator que contribui para que o povo norte-coreano se porte como legítimos defensores de sua história.

 

Referências

André Felipe Costa da Luz é graduando em História pela Universidade Estadual do Ceará – UECE, integrante do Laboratório de Estudos e Pesquisas Orientais – LEPO e membro fundador do Grupo de Estudos Coreanos – ARIRANG, ambos pertencentes ao Centro de Humanidades da UECE.

CUMMINGS, Bruce. Korea’s Place In The Sun: A Modern History. New York: W. W. Norton & Company, 2005.

HISTORIA de Corea. Seúl: Ministerio de Educación de Corea, 1995.

JONG, Son Yong. The Korean Nation – A Homogeneous Nation Whose Founding Father Is Tangun In: TANGUN Founder-King of Korea. Pyongyang: Foreign Languages Publishing House, 1994.

KIM Il Sung Condensed Biography. Pyongyang: Foreign Languages Publishing House, 2001.

SHAE-HO, Chin. Declaração da Revolução Coreana (1923). In: CRISI, Emilio. Revolução Anarquista na Manchúria (1929-1932): Aproximação histórica sobre a experiência da Comuna Libertária impulsionada pelo anarquismo coreano no leste da região da Manchúria. São Paulo: Faísca Publicações Libertárias, 2018.

SUNG, Kim Il. Memórias: No Transcurso do Século. v. 5. Pyongyang: Foreign Languages Publishing House, 1994.

13 comentários:

  1. Ótimo texto e muito interessante.

    Percebe-se pela leitura de seu artigo que claramente os esforços da República Popular Democrática da Coreia em enfatizar a identidade nacional e étnica do seu povo são maiores que os da República da Coreia. Com base na sua pesquisa e seu conhecimento acerca do tema, por que a República da Coreia aparentemente não faz tanta questão de afirmar essas questões envolvendo identidade nacional?

    Alessandro Henrique da Silva

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    1. Muito boa pergunta, Alessandro. Tendo em vista o limite de caracteres da caixa de comentários, vou dividir a resposta em duas partes.

      Eis aí uma questão crucial que, em grande parte, se deve ao cenário que se configura na Coreia logo após o término da Segunda Guerra Mundial e, portanto, para termos uma real compreensão acerca de um fenômeno tão complexo, é interessante que possamos avançar alguns séculos para além de Tangun e recapitular algumas questões determinantes da história contemporânea coreana, evitando as costumeiras análises apressadas e generalizantes que, infelizmente, são comuns quando se trata do tema, ainda que no meio acadêmico.

      Vale lembrar que, entre 1910 e 1945, a Península se encontrava sob domínio formal do Japão. Os coreanos combateram os japoneses por diversos meios, organizados a partir de grupos anarquistas, nacionalistas e comunistas, sendo os dois últimos os setores responsáveis por monopolizar por mais tempo os esforços de resistência. Uma vez derrotado o imperialismo japonês, a península se viu dividida em duas zonas de influência: ao norte do Paralelo 38, se instalaram os soviéticos (que já se encontravam na região desde os idos finais da guerra, preparando uma ofensiva definitiva contra o Japão, algo que não foi necessário, tendo em vista a ação nuclear americana) e ao sul, os estadunidenses, que aterrissam na península ainda no mesmo ano de 1945.

      A trágica divisão da Coreia, perpetrada por mãos estrangeiras, foi responsável por parir, em uma única península, povoada pela mesma gente, dois regimes antagônicos. Ao norte, foi dado continuidade ao projeto de libertação nacional que, como mencionei anteriormente, foi capitaneado majoritariamente por nacionalistas radicais (aqueles que durante a resistência aos japoneses foram adeptos da luta armada) e comunistas, que pautaram a organização inicial da região a partir da atividade de comitês populares, contando com o apoio inicial da União Soviética, operando reformas econômicas e sociais. Ao sul, a presença estadunidense tratou de barrar a instalação dos comitês, neutralizando a influência comunista na região.

      Em 1948 temos a divisão formal da península em dois Estados, formalizando o antagonismo anteriormente mencionado, algo que se perpetua até hoje, porém, com uma diferença determinante: enquanto os soviéticas se retiram totalmente da península ainda em 1948, as tropas estadunidenses não só permanecem, como passam a ampliar a sua presença na região cada vez mais, permanecendo até hoje e contando com uma tropa de mais de 28 mil soldados na região.

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    2. Uma vez entendidas tais questões, é possível perceber que na Coreia, para além da contradição entre socialismo e capitalismo, existe uma profunda contradição entre uma porção da península que prosseguiu com o processo independentista iniciado com a resistência ao imperialismo japonês e a parte que até hoje vê inconclusa o seu processo de libertação nacional, continuando ocupada por uma força estrangeira. Essa é a chave para a resposta da sua pergunta. A República da Coreia, não obstante o seu alto grau de desenvolvimento socioeconômico, se vê alijada de sua independência nacional, tendo sua soberania violada em benefício de interesses estadunidenses, que oferecem "ajuda" e "proteção" (quando na verdade são os principais causadores das tensões existentes na região) em troca da garantia de continuarem mantendo uma base privilegiada (que os EUA utilizam para melhor poder achacar seus rivais da região) em uma localização chave no cenário das disputadas geopolíticas internacionais.

      A República da Coreia, portanto, se encontra, na prática, em uma situação semicolonial e como em todo processo do tipo, as consequências se manifestam para além de questões políticas e econômicas, reverberando também nos terrenos da cultura e identidade nacional. Foi assim durante a ocupação japonesa e é assim durante a ocupação estadunidense. Uma vez estando sob direta influência dos Estados Unidos há décadas, a porção sul da península passa por um já maturado e intenso processo de aculturação, a partir do qual o modo de vida ocidental é assimilado em detrimento dos valores autóctones. O caso de Tangun talvez seja um dos exemplos mais emblemáticos, nos permitindo entender que o motivo pelo qual a historiografia sul-coreana faz "pouco caso" do seu mito fundador reside no fato de que os símbolos nacionais são sempre objetos de disputa e, para um país que não goza do seu pleno direito à autodeterminação, a identidade nacional não é algo interessante de ser estimulado, muito pelo contrário, é importante que a mesma seja preterida em prol dos valores universais próprios do empreendimento globalizante ocidental. Trocando por miúdos, a RDC "não faz tanta questão de afirmar questões envolvendo identidade nacional" porque se trata de um Estado edificado a partir de um empreendimento estrangeiro, ocupado por forças internacionais e submetido a um violento processo de ocidentalização.

      A República Popular Democrática da Coreia, por sua vez, por mais reservas que alguém possa ter em relação ao regime, tem obtido sucesso em seu projeto de edificar um Estado soberano, mantido às custas da autoridade conquistada em decorrência de seu programa nuclear, resistindo - ao contrário do que predicavam a esmagadora maioria dos analistas políticos - ao fim do bloco socialista e aos embargos econômicos. O ufanar da RPDC para com a preservação da identidade nacional é, portanto, uma forma de resistência e uma maneira de enfatizar de que, ao menos naquela porção da península, o processo de libertação nacional não foi frustrado por nenhuma potência estrangeira. A valorização dos singulares e originais traços étnicos e culturais coreanos e, consequentemente, da figura de Tangun, seja como mito ou como homem, é uma forma de se afirmar enquanto nação independente.

      Espero ter me feito entender. Em caso de dúvida, observação, discordância, não hesite em comentar novamente. Abraço!

      André Felipe Costa da Luz

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    3. Nossa, muito obrigado. Realmente faz todo sentido e, bom, eu cada vez mais me interesso em estudar a República Popular Democrática da Coreia justamente por ser um país que sofre um enorme preconceito causado pela propaganda imperialista. Espero que mais textos assim como o seu sejam produzidos para que mais conhecimentos acerca desse país, do povo e suas concepções cheguem ao conhecimento público e diminua o preconceito com relação a RPDC.

      Alessandro Henrique da Silva

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  2. Primeiramente, parabéns pelo interessantíssimo texto. É animador notar que existem alguns grupos de pesquisa dedicados ao estudo sério da RPDC e dos feitos de seu povo.

    Sobre o mito de Tangun, gostaria de saber como se dá a rememoração no calendário do país. Existe algo como um feriado nacional? São celebradas festividades? Também, fiquei interessado em saber mais sobre as publicações da editora coreana em línguas estrangeiras. Imagino que sejam voltadas para o público internacional (talvez acadêmico), mas qual a facilidade de conseguir acesso a esses materiais?

    Pedro Marques Chavez Gil

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    1. Olá, Pedro. Obrigado pela pergunta!

      Ambos os Estados da Península Coreana (vale lembrar que a RPDC, apesar de reconhecer e também se orientar pelo calendário gregoriano, possui um calendário próprio, no qual o ano 1 é referente ao ano de nascimento de Kim Il Sung, no caso, 1912) comemoram, em 3 de outubro, o "Dia da Fundação Nacional", quando o mito do patriarca ancestral é celebrado enquanto marco zero da fundação da Nação.
      Para além disso, Tangun é também uma figura sagrada para diferentes religiões coreanas, que realizam seus próprios rituais comemorativos.

      Sobre a editora de línguas estrangeiras, de fato, é um empreendimento voltado para o publico internacional, com o objetivo de difundir a produção intelectual norte-coreana, publicando contos infantis, manuais de coreano, biografias, obras completas dos líderes e estudos acadêmicos das mais diversas áreas e etc. Os livros são mais comumente publicados em inglês, espanhol, italiano, árabe, russo, chinês e japonês (não traduzem para o português, infelizmente) e podem ser adquiridos em livrarias e lojas de souvenirs em Pyongyang e outras cidades da RPDC. Pela internet, é possível adquirir exemplares físicos através de alguns sites especializados, como no caso do "north-korea-books.com". Existe também o "korean-books.com.kp", um site mantido pelo próprio governo da RPDC e que disponibiliza, de forma inteiramente gratuita para download em PDF, um amplo acervo da Foreign Languages Publishing House, contemplando os mais diversos temas. Outras opção, caso busque especificamente por conteúdo acadêmico, é o site da Universidade Kim Il Sung (ryongnamsan.edu.kp), bem como o da Associação Coreana de Cientistas Sociais (kass.org.kp).

      Caso procure por algum conteúdo específico ou raro, fique à vontade para me contatar por e-mail: andrenoise.felipe@aluno.uece.br
      Em caso de mais alguma dúvida, não hesite em perguntar.

      André Felipe Costa da Luz

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  3. Olá André, tudo bem?

    Gostaria de te parabenizar pelo texto. Primeiro, gostaria de te perguntar como você encara a diferente de construção da idendentidade nacional norte e sul-coreana com o mito de Tangun? Porque me salta os olhos o tamanho do nacionalismo norte-corenano em comparação com o sul.

    Rodrigo Fernandes Vicente

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    1. Obrigado pela pergunta, Rodrigo!

      Vejo a diferença na construção da identidade nacional entre duas repúblicas coreanas como um reflexo direto de seus respectivos percursos históricos nos últimos 75 anos, mais especificamente pelo fato do projeto de libertação nacional iniciado com o combate ao imperialismo japonês ter sido frustrado na porção meridional da península, que continua ocupada por forças estrangeiras, com a diferença de que saíram os japoneses e chegaram os estadunidenses. A discrepante forma como cada república encara o seu mito fundador é reflexo direto disso, bem como o fato de somente a RPDC reconhecer Tangun não apenas como um ser mitológico, mas também como homem. Desenvolvi esse tópico de forma detalhada na resposta para a pergunta do Alessandro, recomendo que dê uma olhada, caso tenha interesse.

      Em relação ao nacionalismo, de fato, a RPDC é um Estado fortemente nacionalista, algo que, ao menos de início, pode saltar aos olhos, principalmente quando se tem arraigada a concepção de que existe uma espécie de antagonismo entre nacionalismo e socialismo. Como já foi mencionado, a RPDC foi fundada por Kim Il Sung, principal liderança no combate ao colonialismo japonês, portanto, a RPDC e a Ideia Juche, filosofia guia do Estado norte-coreano, foram gestadas tendo como premissa a centralidade da questão nacional, de forma que o elemento patriótico passou a compor um elemento indispensável na causa da luta pela independência e pelo socialismo na península. Para os ideólogos da RPDC, a concepção jucheana acerca do nacionalismo se ocupa em preencher as lacunas deixadas pela teoria marxista-leninista em relação ao tratamento dispensado ao elemento nacional. Segundo esse raciocínio, o nacionalismo se divide em duas vertentes antagônicas: a burguesa (corrente marcada pelo sentimento chauvinista de superioridade e exclusivismo nacional) e a revolucionária (pautada na luta pela independência e solidariedade entre os povos e nações oprimidas pelo imperialismo).
      Recomendo bastante a leitura de um texto intitulado "Para compreender corretamente o nacionalismo", escrito por Kim Jong Il, no qual são sintetizados os principais aspectos pertinentes ao patriotismo coreano.
      Em caso de mais alguma dúvida, fique à vontade para perguntar novamente.

      André Felipe Costa da Luz

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  4. Parabéns pelo artigo, vejo como tem crescido o número de pessoas que se dispõe a estudar a República Popular Democrática da Coreia e desmistificar tantas mentiras divulgadas na grande mídia que não usa o menor critério de pesquisa. Assim vejo com desconfiança o suposto combate as fake News, já que não se aplica aos grandes meios de comunicação e pode ser usado como ferramenta de censura. Interessante saber através do seu artigo sobre os esforços da Coreia popular em reconstruir a sua nacionalidade, esta tentativa parece não ser adotada pela parte sul da península, pois se encontra sob ocupação estadunidense, maior interessado em manter o conflito aceso. Acompanho a situação coreana e vejo que em todas as tentativas de uma reaproximação existe um esforço dos Estados Unidos em arruiná-la. Por outro lado, é interessante ver que estão surgindo pessoas na academia, mas também nas mídias sociais dispostas a desmistificar certos estereótipos criados pela guerra ideológica da grande mídia. Como você vê o papel da RPDC no cenário geopolítico atual, e por que este tema parece estar se se tornando tão popular?

    Fernando Müller

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    1. Obrigado pela pergunta, Fernando!

      São bastante comuns as análises que tentam apresentar a RPDC como um mero "peão" da China no tabuleiro de disputas geopolíticas do Extremo Oriente, um raciocínio que se mostra profundamente equivocado quando confrontamos o mesmo com a existência de um Estado soberano há 72 anos, que sobreviveu ao fim do bloco socialista, que resiste diante de gigantescas sanções econômicas e que hoje se posiciona com autoridade em sua região (um espaço alvo de cobiça internacional, tendo em vista o antagonismo econômico entre China e potências ocidentais, daí a necessidade estadunidense de interferir na região, atrasando as negociações em torno de uma possível reunificação e preservando sua posição estratégica, como você bem colocou) mesmo cercado por potências do quilate de China, Rússia e Japão (algo com o que os coreanos tiveram que lidar desde os seus primórdios, não sendo por menos que a Coreia era conhecida como "Reino Eremita", tendo em vista a necessidade de se preservar perante seus vizinhos). Diante de tudo isso, o papel da RPDC no cenário atual não poderia ser outro senão o de um país-chave, peça fundamental para o lado contra-hegemônico da balança geopolítica internacional.

      Contrariando todas as apostas, a RPDC não só resistiu aos ímpetos imperialistas, mas também soube, enquanto isso, se consolidar enquanto potência balística (fruto da chamada Política Songun). Apesar de não ter o poder de barganha institucional de China e Rússia, a dissuasão nuclear permite que a RPDC sente-se à mesa para dialogar em posição de igualdade com qualquer outra parte, como fez com Estados Unidos recentemente. Como podemos ver, a RPDC acaba por cumprir um papel determinante no equilíbrio de forças em prol de uma concepção de mundo multipolar.

      Em relação ao crescimento da popularidade do assunto, acredito que deve-se fundamentalmente ao que acabamos de discutir, ou seja, o papel cada vez mais importante desempenhado pela RPDC no cenário geopolítico asiático, sempre contrariando todas as previsões apressadas. Para além disso, o costumeiro olhar generalizante e sensacionalista que a mídia hegemônica costuma lançar sobre o país não mais surte o efeito de outrora, tendo em visto o natural desgaste de confabulações absurdamente caricaturais que cada vez mais perdem credibilidade (como os inúmeros boatos de execuções sumárias que são desmentidas após as aparições públicas dos próprios executados, apenas para citar um exemplo), fazendo com que surja um novo público - seja acadêmico ou geral - ávido e curioso em relação ao "outro lado da moeda".
      Espero ter me feito entender.

      André Felipe Costa da Luz

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  5. André, como vai?
    Excelente artigo, muito bem escrito, parabéns.
    Após a leitura, fiquei com algumas dúvidas e gostaria de lhe perguntar:
    Primeiro, em relação a comunidade científica sul-coreana, quais são as alegações para não se considerar a produção científica norte-coreana?
    E em segundo ponto, à título de curiosidade, gostaria de saber se existem outros casos parecidos a este, em que o mito/História é muito importante para o povo norte-coreano, mas que não recebe a mesma atenção por parte dos sul-coreanos. Agradeço a atenção.

    Lorena Correia.

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    1. Obrigado pela pergunta, Lorena!

      O desdém por parte da academia sul-coreana para com a produção intelectual oriunda da RPDC é basicamente amparado pela acusação de que grande parte do que é produzido por lá não passa de propaganda, mesmo que os norte-coreanos apresentam comprovação científica de suas conclusões, como no caso do livro citado no artigo, um amplo estudo acerca da descoberta dos restos mortais de Tangun, referendado por destacados pesquisadores de diferentes áreas e que até hoje segue sendo alvo de descredito, apesar de nunca refutado.

      Sobre o segundo ponto, existem diferentes aspectos da história coreana, da antiguidade ao contemporâneo, que possuem interpretações discrepantes entre norte e sul, muito por conta do que já foi abordado em respostas anteriores. Um exemplo claro é o da historiografia do período referente a luta contra o colonialismo japonês. Enquanto o norte reconhece e enfatiza o papel dos diferentes grupos coreanos (nacionalistas, anarquistas e, principalmente, comunistas, obviamente) atuantes - em maior ou menos grau - no processo, os historiadores do sul, seguindo a linha hegemônica no ocidente, tendem a enxergar o processo de libertação nacional como resultado da confluências de forças internacionais, reconhecendo apenas o papel do Governo Provisório da Coreia e dando ênfase ao papel de ajuda desempenhada pelos EUA ao final do conflito. O papel dos grupos comunistas liderados por Kim Il Sung é inteiramente omitido ou reduzido ao posto de "fantoche soviético" em benefício de uma narrativa que reduz 35 de lutas ao espaço de uma nota de roda pé, encarando a derrota do imperialismo japonês como um efeito colateral do fim do Segunda Guerra Mundial, acabando por minimizar o protagonismo dos próprios coreanos. Os historiadores da RPDC costumam definir a perspectiva hegemônica na RDC como sendo própria de uma historiografia colonizada e colaboracionista para com as forças japonesas e estadunidenses.

      André Felipe Costa da Luz

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