A PASSAGEM ENTRE IMPÉRIOS NA ÁSIA MODERNA: O DOMÍNIO HOLANDÊS ATRAVÉS DAS MISSÕES PROTESTANTES (SÉCULO XVII)
Introdução
Concentramos nossa objetiva em analisar conflitos
religiosos ocasionados pela Reforma Protestante que, no contexto das expansões
ultramarinas na Idade Moderna, alcançou o continente asiático. As missões
protestantes desenvolvidas pelos holandeses na Ásia estão relacionadas aos
conflitos com o Império Asiático Português e, consequentemente, ao catolicismo.
Ainda que não seja o objetivo apresentar um estudo detalhado acerca da presença
portuguesa na Ásia, é necessário abordar questões prévias da dominação lusitana
para que seja possível demonstrar como o avanço holandês, amparado em ideais
reformadores, não foi capaz de negligenciar o que fora enraizado pela Coroa
portuguesa. Tomaremos, em primeiro lugar, aspectos da dominação portuguesa,
ameaçada pelos holandeses e as missões protestantes.
Após a contextualização geral, pretendemos apresentar um estudo de caso acerca de João Ferreira de Almeida (1628-1691), missionário calvinista nascido em Portugal. Atuando na Batávia, atual Jakarta, Indonésia, no século XVII, o missionário deteve papel significativo na propagação da religião reformada através de escritos teológicos em língua portuguesa. Sendo o primeiro tradutor autônomo da Bíblia para o português, Almeida será tomado, aqui, como a exemplificação de conflitos entre católicos e protestantes na Ásia por conta de sua literatura que infere críticas à religião de Roma. Pretendemos analisar como a dimensão religiosa foi tratada na Batávia, onde os holandeses estabeleceram a sede de seu império colonial em contrapartida ao já consolidado Império Asiático Português (GOOR, 2004).
O contexto histórico mais amplo é o dos conflitoss políticos e religiosos entre Portugal e Holanda, principiados na época da União Ibérica (1580–1640). Tais conflitos se prolongaram com as guerras entre ambos em regiões da Ásia, resultando em perdas coloniais por parte dos portugueses (Malaca, Colombo no Ceilão, regiões do arquipélago Indonésio) e avanço dos holandeses. A presença portuguesa na Ásia foi caracterizada pela expansão militar, comercial e também religiosa, com a difusão do catolicismo (BOXER, 2002). Por tal razão, destacamos a importância de tomar como análise um missionário nascido em Portugal que destoa da influência católica, apresentado no contexto dos embates religiosos.
Portugal e Holanda: conflitos políticos e religiosos
Sabe-se que, na Idade Moderna, alguns reinos e agentes da Europa, sobretudo a Coroa Portuguesa, que professava a fé católica, destacaram-se na promoção da expansão marítima e comercial em direção a territórios extra europeus. Portugal desejava conquistar o ultramar, não apenas na busca por metais preciosos, mas, a partir da dominação em partes de continentes variados, fazer uso de pessoas como mercadoria, tornados cativos e exportados para outros continentes. É preciso compreender que as grandes missões exploratórias da Idade Moderna estavam associadas aos embates religiosos do século XVI e XVII, transportadas pelos navegantes europeus.
A difusão da fé foi
utilizada como um dos elementos que justificavam a expansão ultramarina
portuguesa. A promoção do catolicismo ocorreu por meio de diferentes ações, que
poderiam ser desde a conversão de elites políticas, promessas de alianças e até
medidas mais violentas. O Império Marítimo Português, num contexto totalmente
religioso, pode ser definido, também, como “uma empresa militar e marítima
moldada numa forma eclesiástica” (BOXER, 2002, p. 89). Nesse sentido, o autor
apresenta um estudo acerca da importância religiosa no contexto da expansão
ibérica. Aqui, destacamos as considerações de Boxer sobre a dominação imperial
portuguesa, em que o historiador procura evidenciar como os ideais católicos
embasaram a dinâmica das conquistas ultramarinas do Império português. De
acordo com Boxer, o pensamento eclesiástico da época entendia que “[...]
Portugal fora criado por Deus com a finalidade específica de difundir a
religião católica romana pelo mundo inteiro” (BOXER, 2007, p. 98). Contudo,
segundo A. R. Disney, o século XVII foi preocupante para os portugueses: ao
perderem sua posição no comércio europeu da pimenta, “holandeses e ingleses
caracterizaram-se como concorrência de peso, disputando espaços, rotas e,
também, fiéis” (DISNEY, 2011, p.
240).
O indiano Kirti Chaudhuri, em importante obra organizada com Francisco Bethencourt, aponta que “após o Concílio de Trento, todo o impulso da Contra-Reforma e da tarefa da conversão cristã nas terras para lá da Europa foram delegados a Portugal e à Espanha [...]” (CHAUDHURI, 1997, p. 83). Havia o objetivo de combater, simultaneamente, as heresias encontradas tanto em sua própria nação, quanto em solo estrangeiro, para que fosse possível unir os interesses entre Igreja e Estado.
Em referência ao caso holandês, Disney enfatiza que similaridades ao Império asiático português podem ser notadas. Os holandeses faziam uso do corso, do saque, e visavam estabelecer uma supremacia comercial no Oriente, responsável por desestruturar o que já havia sido consolidado pelos portugueses em momentos anteriores. Estes, em contrapartida, precisavam manter uma receita economicamente rentável para que a sustentação do comércio interportuário asiático fosse visto com bons olhos pela Coroa.
Chaudhuri aponta que a Companhia Holandesa das Índias Orientais foi responsável por concorrer diretamente com os portugueses. Em embates militares e comerciais, o Império Asiático Português saiu desfavorável, fazendo com que suas companhias comerciais perdessem força. Ainda de acordo com Chaudhuri, “em finais do século XVI, a chegada dos Holandeses e Ingleses ao oceano Índico foi encarada pelos homens de Estado e funcionários portugueses, tanto em Portugal quanto nas Índias, como um claro desafio à supremacia política e econômica de que o Estado da Índia gozara durante quase um século em todo o mundo” (CHAUDHURI, 1997, p. 94).
Além de disputas comerciais, é importante destacar como embates religiosos foram transportados ao continente asiático, onde os holandeses puderam, enfim, expandir os ideais reformadores. Os holandeses, como aponta o historiador Luiz Henrique Menezes Fernandes, buscavam investir contra regiões que detinham papel fundamental para a vitalidade das Índias Orientais. A luta, além de política e comercial, tomou proporções religiosas, já que o catolicismo também foi combatido pelo calvinismo em espaços outrora dominados pela Coroa portuguesa, como Malaca, por exemplo, conquistada em 1641 (FERNANDES, 2016).
A esse respeito, é importante contextualizar sobre as condições prévias para o favorecimento do protestantismo em possessões holandesas na Ásia. Assim, também será possível compreender o vantajoso espaço para difusão de uma literatura religiosa em língua portuguesa, como os escritos por João Ferreira de Almeida. Fernandes afirma que por conta de uma adesão total dos princípios indicados no Concílio de Trento, Portugal e Espanha conseguiram, de certa forma, bloquear uma possível expansão dos ideais protestantes enquanto o catolicismo romano fazia-se supremo. Através da Inquisição, numa ação conjunta entre Coroa e Igreja, o luteranismo e outros comportamentos opostos aos ideais católicos sofriam grande repressão. Aqui, vemos a exemplificação das definições de Boxer, quando apresenta a relação intíma entre Coroa e Igreja no processo de busca pela soberania, seja em terra natal ou em possessões no ultramar. Quando os holandeses detém maior possibilidade de expansão no Oriente, com o enfraquecimento militar porutugês, “o combate travado nos reinos ibéricos contra as dissidências religiosas foi naturalmente transplantado aos seus domínios ultramarinos, ocidentais e orientais [...]” (FERNANDES, 2016, p. 45).
Segundo Fernandes, a Guerra dos Oitenta Anos (1568-1648) esteve relacionada às tensões católico-protestantes, numa revolta política neerlandesa contra o domínio da Coroa espanhola. No período de guerras, o autor destaca que as províncias do sul, conhecidas pelos espanhóis como províncias obedientes, acabaram voltando ao domínio imperial espanhol, ao passo que as sete províncias do norte buscaram reafirmar sua autonomia, através da declaração de independência, em 1581. Enquanto o catolicismo reinava nas províncias do sul, por conta do domínio espanhol e da Igreja de Roma, o norte via o calvinismo sobrepujar outras vertentes religiosas, sendo institucionalizado na Igreja Reformada Holandesa (FERNANDES, 2016).
Em função da União Ibérica (1580-1640), Portugal estava sujeito ao domínio espanhol e, por isso, esteve intimamente envolvido no conflito contra as províncias neerlandesas rebeldes. Em 1594, com a proibição imperial da presença holandesa no porto de Lisboa, os mercadores de Amsterdam optaram por produtos vindos diretamente do Oriente, o que gerou consequências catastróficas aos portugueses. Assim, a atividade marítima holandesa passou por uma intensificação no século XVII, voltando-se para o comércio de especiarias no Índico e proporcionando o surgimento de diversas companhias comerciais privadas que, futuramente, foram centralizadas e institucionalizadas pela Companhia Unida das Índias Orientais.
João Ferreira de Almeida e a escrita como estratégia missionária
protestante
Após a contextualização sobre os embates político-religiosos entre Portugal e Holanda, destacamos a atuação de João Ferreira de Almeida, missionário protestante que tomamos como exemplo. Falar sobre o missionário calvinista, que atuou diretamente à serviço da Companhia das Índias Orientais, torna viável demonstrar como os embates políticos presentes no Oriente possuem caráter religioso. Ao passo que apresentamos sua trajetória, destacamos o ofício de tradutor da Companhia das Índias Orientais, detendo papel de suma importância nos empreendimentos da República Holandesa que tinha por objetivo a propagação da ortodoxia Reformada e a dominação imperial, sobretudo através da literatura religiosa. Principia-se, a partir da análise da trajetória de Almeida, entender o contexto em que o missionário protestante estava envolvido.
Segundo a “Carta Apologética em defesa da religião católica” escrita em 1670 por Hieronymo de Siqueira, Almeida era natural de Torre de Tavares, uma antiga freguesia portuguesa, distrito de Mangualde. Hieronymo de Siqueira era missionário católico e estava envolvido em constantes conflitos teológicos e literários com Almeida. Sua obra, que infere duras críticas teológicas aos reformadores e sobretudo à Almeida, ganha força entre os estudiosos do tema por ser contemporânea aos missionários, e desmente o fato de que Almeida teria nascido em Lisboa. Fernandes destaca que os holandeses, responsáveis por perpetuar o legado de Ferreira de Almeida, viam os portugueses, de forma genérica, como naturais de Lisboa, em uma associação direta da cidade com a naturalidade lusitana.
Hieronymo de Siqueira procurou tecer em seus escritos apontamentos que colaboravam em defesa da ortodoxia católica. O documento tinha por objetivo a apresentação de conexões entre a trajetória de vida de João Ferreira de Almeida e Maomé, tendo por premissa demonstrar que os dois personagens seriam seguidores do anticristo. Há intenção de difamar a imagem de Almeida, visto que Hieronymo de Siqueira e o missionário protestante defendiam, ao mesmo tempo e no mesmo lugar - a Batávia - ortodoxias diferentes, e necessitavam de estratégias para evitar a migração de fiéis, o que reafirma nossa tese de que a religião participou do conflito entre impérios.
Por mais que a “Carta Apologética” seja certamente tendenciosa, é possível entender que o escrito carrega veracidade ao apresentar um fato que não seria de tanta relevância ao contemporâneo de Almeida: sua naturalidade. O contato direto, embora conflituoso, entre os dois defensores de suas respectivas ortodoxias religiosas e o fato de ser mencionada uma localidade específica são condições que valorizam o teor da fonte.
Uma obra que muito contribuiu para a sintetização da trajetória crítica de Almeida foi a elaborada por Herculano Alves. A obra, intitulada “A Bíblia de João Ferreira de Almeida”, procura, mesmo com a ênfase em seu trabalho como tradutor, levantar questões sobre a vida pessoal de Almeida. Alves proporciona, igualmente, a oportunidade de conhecer o missionário protestante em seu cotidiano, entendendo como um homem foi capaz de ser o tradutor mais produtivo da língua portuguesa.
Fazendo uso de fontes históricas e literárias, Herculano Alves atinge seus objetivos ao se aprofundar nos escopos de Almeida. Tal inquietação foi proveniente da escassa informação sobre o tradutor, ou da sintetização de informações incompletas e/ou equivocadas. Há muitos escritos sobre Almeida que estão disponíveis em arquivos como Copenhaga (Biblioteca Nacional), Haia (Biblioteca Nacional), Leiden, Paris (Biblioteca Nacional), British Library, Bodleian de Oxford, da Universidade de Cambridge, Madrid (Biblioteca Nacional), Salamanca, várias do Rio de Janeiro e S. Paulo, Nova Iorque, Washington e Bóston, por exemplo (ALVES, 2013). Como aqui apresentamos estudos introdutórios sobre uma pesquisa de maior amplitude, é importante destacar que um dos anseios futuros é sintetizar parte do material disponível nos arquivos citados acerca da trajetória de João Ferreira de Almeida. Será de grande valia compreender seu ofício como tradutor da primeira Bíblia autônoma para o português, apresentando suas objetivações, conflitos internos e externos, balizamentos teológicos, bem como sua ligação entre Torre de Tavares e Batávia.
Muitas das biografias analisadas possuem um direcionamento mais técnico, não havendo uma preocupação em oferecer comentários sobre Almeida em sua vida pessoal. Herculano Alves merece destaque quando evidencia que o tradutor português se tornou um dos mais famosos emigrantes portugueses da Idade Moderna, “com um espírito jovem, estudioso, inquiridor, ambicioso, lutador e generoso”. (ALVES, 2013, p. 290). Alves também apresenta uma lista de lugares por onde Almeida passou e obteve destaque na execução de seu ministério, sempre apresentando uma visão que principia a exaltação do missionário. Na obra, Almeida é entendido como um exitoso representante da ortodoxia protestante, sem negar suas raízes lusitanas ao executar seu ministério em possessões holandesas, na Ásia. Tal constatação é feita, sobretudo, por conta da vontade de Almeida em alcançar pessoas que tinham acesso ao português e, assim, poderiam compreender a ortodoxia protestante em idioma acessível.
Trabalhando como tradutor principalmente em Malaca e na Batávia, Almeida merece ter sua trajetória traçada e suas objetivações tidas de modo palpável. Apresentamos o contexto macro (os embates teológicos), mas não podemos abrir mão de informações que ajudam a explicitar João Ferreira de Almeida, tornando-o um objeto de estudo mais palpável, conhecendo-o como sujeito responsável pela tradução da primeira Bíblia em português, feita em solo asiático, mas também como sujeito dotado de ideais.
Entender o contexto no qual a literatura protestante é produzida é de extrema relevância. Todavia, entender os anseios, temores, desafetos e objetivos alcançados pelo tradutor são considerações importantes. De tal maneira, será possível compreender Almeida como um homem de extrema relevância por ter contribuído de forma significativa ao contexto macro ao apresentar as Escrituras Sagradas em português, língua falada pelos fiéis outrora adeptos ao catolicismo. No século XVII, quando algumas regiões asiáticas vivenciaram a passagem da dominação portuguesa para a holandesa, não foi possível negligenciar características instituídas por Portugal, resultado dos muitos anos de dominação na região, como a língua portuguesa.
Ainda não há uma certa coesão entre pesquisadores quando se trata das motivações para que Almeida tivesse sua trajetória direcionada para a Ásia. É demasiadamente difícil, ainda, compreender como um português representou tanto para a difusão do protestantismo, tão longe de sua terra natal, e sem ter o holandês como língua materna. Calvinista, muito provavelmente Almeida tenha herdado premissas de João Calvino, sintetizado por Carter Lindberg como “[...] dogmático retrógrado e ecumênico; inquisidor impiedoso e pastor cuidadoso; autoritário insensível e humanista compassivo; individualista rigoroso e pensador social; sistematizador lento e teólogo dos teólogos [...]; homem dominado pela lógica e também de traços contraditórios e inconsistências [...]” (LINDBERG, 2017, p. 281).
A doutrina calvinista, definida por muitos como centralizada na predestinação, talvez tenha sido a grande balizadora do pensamento de Almeida. Não se sabe ao certo detalhes acerca de sua conversão, mas aos 17 anos de idade já havia concluído sua primeira tradução do Novo Testamento. Muito provavelmente, Almeida tenha considerado que sua história de vida e os fatos correntes estavam ligados à predestinação. Vale destacar que Calvino dispôs grande parte de sua vida à formulação de Catecismos. O objetivo seria proporcionar, através da escrita, a propagação das principais convicções calvinistas, tratando de temas como “lei, credo, oração do Pai Nosso, sacramentos do batismo e da Ceia do Senhor, argumentos contra sacramentos católicos ainda praticados e uma discussão sobre liberdade cristã” (LINDBERG, 2017, p. 286).
Seguindo em linha de pensamento semelhante, Almeida faz uso da escrita como um dos meios utilizados na
propagação do protestantismo na Ásia e a luta contra a evasão de fiéis que
poderiam aderir novamente o catolicismo. Em trecho presente no documento Differença d’a Christandade, escrito
originalmente em castelhano e traduzido para o português, pelo próprio Almeida,
o missionário protestante infere críticas ao catolicismo e defende seu ponto de
vista ao considerar o acesso às Escrituras Sagradas uma ferramenta valiosa para
fugir da ignorância de pensamento. Também é possível observar ataques aos
dogmas católicos que são acusados de propagarem idolatrias e superstições
abomináveis: “[...] o proibir a Igreja Romana ao povo cristão a lição da
Sagrada Escritura é [...] para o entreter em uma mui tenebrosa, grosseira e
mortífera ignorância, e em mui perigosa e prejudicial superstição; excluindo-o,
assim, daquela devida notícia, legítimo conhecimento e necessária luz [...]”
(ALMEIDA, 1668, sem paginação).
Este e outros escritos de Almeida, como catecismos e obras apologéticas ao protestantismo, tinham por objetivo central propor instruções opositoras à doutrina católica. Difundindo documentos em português e em holandês, João Ferreira de Almeida empenhou-se na tradução da Bíblia, acreditando que o acesso à mesma seria fator crucial para iluminar o pensamento dos fiéis presentes na Batávia do século XVII. Através de impressões na Ásia e na Holanda, e após sucessivas revisões, Almeida também fez uso da sua versão em português para combater afirmações feitas pela Igreja de Roma, acreditando que o catolicismo era responsável pela corrupção da doutrina cristã.
O missionário protestante traduziu a Bíblia para o português pensando nas inúmeras pessoas que não conhecem outras línguas, buscando alcançar Portugal e populações de língua portuguesa que se encontravam nas Índias Orientais. Apresentar um material, originalmente em castelhano e outrora monopolizado pela Igreja Católica, foi uma grande estratégia utilizada por Almeida, como forma de propagar o Evangelho em terras onde o português havia se enraizado ou ao menos se tornado uma espécie de língua franca, como em regiões da Ásia. O tradutor explicita que seu objetivo de traduzir a Bíblia por completo seria de grande esmero por poder oferecer aos fiéis reformadores “a maior dádiva, o mais precioso tesouro, que nunca ninguém, que eu saiba, até o presente, vos tenha dado”. (ALMEIDA, 1668, sem paginação).
Por conta de sua morte, em 1691, Almeida não conseguiu
alcançar seu objetivo de fazer a tradução completa da Bíblia. Mesmo assim, seu
pioneirismo e contribuição para a propagação da religião reformada são
considerações inegáveis. O missionário buscou apresentar suas controvérsias
religiosas, diante do legado católico e português deixado em terras asiáticas,
agora sob domínios holandeses.
Referências
Carlos Aldlen Torres de Souza é mestrando pelo Programa de
Pós-graduação em História (PPHR) na Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro (UFRRJ) e bolsista CAPES.
Fontes primárias
Carta
Apologética em defenção da Religião Catholica Romana contra João Ferreira de
Almeida, predicante da secta calvinista, geita em Bangalla... Anno: 1670.
Disponível no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (Lisboa).
Differença d'a christandade: em que claramente se manifesta,
I. a grande disconformidade entre a verdadeira e antiga doctrina de Deus [...]
traduzido e acrecentado tudo, agora de novo, pelo P. Ioaõ Ferreira A. d'
Almeida, ministro pregador d'o S. evangelho 'na India Oriental. Nova Batavia:
com privilegio d'o supremo Conselho d'a India, e aprovaçaõ d'o Consistorio ecclesiastico:
Por Henrique Brando, e Joao Bruyningo, 1668. (Universitätsbibliothek
Basel, fb
661.
Disponível em: <https://doi.org/10.3931/e-rara-28970>).
Bibliografia
ALVES, Herculano. A Bíblia de João Ferreira
Annes d’Almeida. Revista Lusófona de Ciência das Religiões, p. 290, n. 9-10,
nov. 2013. ISSN 2183-3737. Disponível em: https://revistas.ulusofona.pt/index.php/cienciareligioes/article/view/4095.
BOXER, Charles.
A Igreja Militante e a expansão ibérica: 1440-1770. São Paulo: Companhia das
Letras, 2017.
______. O
império marítimo português. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
CHAUDHURI,
Kirti. A concorrência holandesa e inglesa. In: BETHENCOURT, Francisco; CHAUDHURI, Kirti. História da
expansão portuguesa, v.I. Lisboa: Círculo dos Leitores, 1997.
DISNEY, A. A
História de Portugal e do Império Português. Lisboa: Paz & Guerra, 2011.
FERNANDES, Luís
Henrique Menezes. Diferença da Cristandade: a controvérsia religiosa nas Índias
Orientais holandesas e o significado histórico da primeira tradução da Bíblia
em português (1642-1694). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas:
Catálogo USP, São Paulo, 2016.
GOOR, Jurrien Van. Prelude to Colonialism: The Dutch
in Asia. Hilversum,
2004.
LINDBERG, Carter. História da Reforma. Rio de
Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2017.
Boa tarde Carlos! Que maravilha te encontrar nos eventos!
ResponderExcluirAchei seu trabalho super interessante. O Almeida parece uma figura espetacular. Fiquei pensando: se ele polemizava a doutrina católica, posso presumir uma postura áspera também quanto aos nativos convertidos ao catolicismo? Como eles eram representados nas fontes ? Ou isso era uma questão apenas com os portugueses?
Uma coisa me intrigou muito: Considerando que Almeida é um estudioso, um conhecedor de línguas, um tradutor, penso com quem de fato ele estava dialogando ou queria dialogar. Veja bem, estamos falando das populações nativas lá nas Indias Orientais no século XVII, uma população estratificada, majoritariamente analfabeta, principalmente na língua portuguesa, já que esta não era a língua nativa deles. Todo esse esforço de tradução para o português meio que é um tanto que em vão para aquela população. Presumo então que Almeida não estava preocupado com a conversão dos nativos, mas sim em "polemizar" com os portugueses, o que é um reflexo do seu tempo né, do contexto que ele vivia, desse debate e embate apresentado por você. Sendo assim, por que ele foi para o oriente? Ele poderia fazer isso de qualquer lugar, ou não? Fiquei me questionando isso, pois tive a impressão que talvez a maior preocupação dele não era missionar naquelas partes ou se fazer acessível aos nativos, pareceu mais uma questão com os portugueses católicos.
Abraço, e parabéns pela pesquisa!
Oi, Camila. Boa tarde! Obrigado pela pergunta.
ExcluirVocê me fez refletir muito... É um trabalho inicial e você me proporciona pensar a propagação do protestantismo por outras perspectivas. O Almeida era um erudito, não acredito que ele fazia o trabalho "de campo". Pelo menos nas fontes analisadas não há nada do tipo, mas ele estava empenhado nos escritos que seriam difundidos. Não vejo uma representação áspera quanto aos nativos, já que ele sempre destaca como deseja alcançar todos aqueles que têm algum conhecimento do português, segundo as fontes, por amor. Aqui, destaco: segundo as fontes.
O comentário que fez me apresenta inúmeras possibilidades de pesquisa e questionamentos que tenho feito em um momento inicial, e é verdade: ao passo que promove escritos teológicos, Almeida é utilizado pelos holandeses para polemizar com eruditos da religião católica, sempre em português. Realmente, ele poderia fazer isso de qualquer lugar, e sua trajetória apontada para o Extremo Oriente ainda não é consenso entre os pesquisadores.
Como missionário erudito, cuja técnica missionária estava na escrita, você pode ter razão e estou ansioso para encontrar as respostas e apresentá-las em uma outra oportunidade.
Um abraço!
Boa noite!
ResponderExcluirCarlos, parabéns pelo texto, a sua temática é muito interessante e nos ajuda a compreender essa fase de transição entre o domínio português (católico) e o holandês (protestante) na Ásia.
Minha pergunta:
Os holandeses aceitaram a presença e o trabalho de Almeida nas suas colônias como uma forma de facilitar e consolidar a sua presença nas terras asiáticas?
Pois como um missionário protestante e importante tradutor português, Almeida seria uma importante ferramenta para contrabalançar a influência lusitana e católica nos recém territórios conquistados pelos holandeses, a medida que o idioma português deveria ser uma importante língua de comércio nas terras asiáticas do Oceano Índico.
Oi, José. Boa tarde!
ExcluirPrimeiramente, muito obrigado por ter lido o trabalho e pelo feedback.
O Almeida foi um instrumento muito importante para a dominação holandesa. Como a corrida comercial estava em jogo, uma das estratégias utilizadas foi a conversão de católicos para o protestantismo. Como o português, em tese, já estava enraizado, ter um missionário português foi de extrema importância na Batávia. Ele era a ponte para dialogar com agentes católicos presentes nas possessões portuguesas no Oriente ou em Portugal, além de se beneficiar por conseguir difundir o protestantismo sem a repressão da Reforma Católica.
Um abraço!
Boa noite Carlos! Fico feliz de te ver aqui no SimpoOriente pela primeira vez! Parabéns pelo texto, que tem uma escrita agradável e de fácil entedimento, mesmo para os pesquisadores fora do tema e pela temática, que é tão pouco explorada!
ResponderExcluirLendo seu texto, eu fiquei curioso com algumas coisas: Em um momento você menciona que o Almeida não nega suas raízes lusitanas, mesmo atuando em solo de possessões holandesas. Como ele fazia isso? Ou estava presente na escrita dele? Como essas raízes lusitanas se manifestavam no Almeida? Falando no Almeida, eu fiquei muito curioso com ele! Gostaria de saber se você poderia falar mais da atuação do Almeida na Ásia. O método de evangelização que ele utilizava, ou o contato dele com os nativos. As atividades dele como missionário que não teriam a ver com a tradução em si.
Oi, Renan! Fico muito feliz com seu comentário, me tirando da zona de conforto e me fazendo pensar além rs.
ExcluirPrimeiro, obrigado pelos feedback positivo!
Bom, o Almeida é um ser muito curioso. Ainda não há um consenso sobre como ele viu sua trajetória envolta nos interesses holandeses, inclusive com passagem por Amsterdã. Consegui fazer uma síntese de alguns lugares pelos quais ele passou e são diversos, mas a motivação inicial ainda não foi encontrada por mim, o início: Portugal x Amsterdã x Extremo Oriente.
Ele manifesta suas raízes lusitanas sempre destacando na fonte, Differença d'a Cristandade, que visa alcançar todos os povos que possuem algum conhecimento sobre a língua portuguesa. Ele detinha conhecimento de outros idiomas e poderia ter sua objetiva em outros escritos, mas sempre visa enfrentar o catolicismo romano, defendido por Portugal, com escritos em português. Um dos meus objetivos é explorar a dosagem entre motivação pessoal e motivação profissional aflorada pela VOC. É na escrita que vemos a preocupação dele com "seu povo", por assim dizer...
E o Almeida era um erudito. Ele atua principalmente com escritos polemistas, como o Fernandes elucida, buscando apresentar as controvérsias entre o catolicismo e o que ele entende como a verdadeira fé, livre de corrupções. Aparentemente, Almeida não está em campo, mas se apresenta como um missionário teórico, traduzindo a Bíblia para o português e apresentando duras críticas ao catolicismo, mostrando como a religião Reformada deveria ser seguida por quem estava presente na Batávia ou ao redor do mundo.
Um abraço!
Olá Carlos. Muito bom seu texto. Achei interessante você trazer esse debate em torno do Almeida, até porque nos soa curioso um missionário português calvinista. Mas gostaria de saber se há a possibilidade de fazer um debate entre os calvinistas, e as populações muçulmanas e budistas autóctones de malaca e da batávia? Caso sim, há escritos do Almeida sobre essas populações? Pois, até onde eu vi, você no seu texto só abordou os conflitos entre católicos versus protestantes.
ResponderExcluirabraços,
Rodrigo Fernandes Vicente
Oi, Rodrigo. Muito obrigado pelo comentário positivo! O Almeida é realmente uma figura muito curiosa, destoa completamente do padrão da Idade Moderna. Além de ser português, atua sob os auspícios holandeses.
ExcluirOlha, nunca parei para fazer tais conexões, mas você me desperta inúmeras curiosidades. Não podemos negar que a presenta dos Impérios Ibéricos foi instável, lidando com redes internas e externas. Ainda não vi escritos de Almeida sobre tais populações, me parece que sua maior preocupação está em atacar os católicos portugueses, talvez por serem os maiores opositores ao calvinismo na Batávia e aos interesses holandeses.
É um ótimo objeto de estudo e espero conseguir apresentar respostas mais concretas em uma próxima oportunidade, já que há uma miscelânea cultural e o próprio Almeida atua como mediador. Ainda não encontrei nada sobre tais populações nas fontes que apresentei, mas seria muito interessante proporcionar um debate sobre.
Um abraço!