Guilherme Henrique Gooda Antônio e Cleiton Calebe da Silva Guerra

 

O LENHADOR E A ÁRVORE: ALTERIDADE E RECONHECIMENTO NA PARÁBOLA DE ZHUANG ZI


O texto apresentado tem por objetivo discutir a questão da alteridade, a partir da perspectiva do pensamento taoísta. Para tal, selecionamos uma parábola de Zhuang Zi, pensador taoísta do período dos Estados Combatentes. As divisões políticas e as várias escolas de pensamento que despontaram nesse período cada uma com sua própria visão de verdade, guarda semelhanças com o mundo atual em diversos aspectos. Nesse contexto, Zhuang Zi aparece com uma terceira via, que põe em xeque a própria natureza do discurso. Através do caráter pedagógico inerente ao gênero alegórico da parábola. Este trabalho busca enriquecer os estudos sobre pensamento chinês, bem como aproximá-los das questões da modernidade.

 

O Tao e os taos

A maioria das correntes de pensamento durante o período dos estados combatentes (séc V-III) partem da constatação de que o mundo não é senão discórdia e violência, a corrente taoísta parte numa direção distinta. Os pensadores que compõem tal corrente como Lao Zi e Zhuang Zi não se põe a procurar meios para remediar a situação, mas colocam-se à escuta de algo além da cacofonia que se ouve sob o barulho dos conflitos e das teorias e discussões: o Tao.

Conforme a tradição, Zhuang Zi (Wade-Giles: Chuang Tzu, chinês: 庄子) é o segundo mestre taoísta após Lao Zi, este último sendo contemporâneo de Confúcio, vivendo portanto entre os séculos VI-V. Convém mencionar que alguns sinólogos tendem a reconsiderar a apresentação tradicional, chegando a inverter a ordem e colocar o início da composição do Zhuang Zi no século IV, antes da composição do Dao De Jing pelo final do séc. IV. Os dois nomes, comumente citados juntos, não eram associados antes da era imperial. Somente no século II, no início da dinastia Han, que cunha-se o rótulo Daojia na classificação de escolas de pensamento dos Reinos combatentes de Sima Qian em suas Memórias histórica (Shi Ji).

Enquanto livro, o Zhuang Zi é escrito em prosa de estimada qualidade literária, permanecendo como paradigma da literatura chinesa. O tom claramente pessoal da obra ( principalmente nos capítulos internos) faz com que seja verdadeiramente uma obra de autor. Ao se apresentar como um mosaico de textos, compilados desde o fim do séc. IV até o séc. III formam inegavelmente um conjunto com voz própria. A edição atual comporta 33 capítulos: os internos (1 a 7) atribuídos pela crítica ao próprio Zhuang Zi, e os capítulos externos (8 a 22) de autenticidade duvidosa e finalmente os 11 últimos (23 a 33) conhecidos como mistos.

Na concepção de Zhuang Zi, existe o Tao (a totalidade da realidade) e existem recortes parciais dessa realidade, geralmente humanos, sociais e operados pelo discurso. Enquanto as outras escolas de pensamento se prendem a longos discursos, para discorrer sobre a realidade do Tao e o pensamento de modo geral,  Zhuang Zi prefere o diálogo contínuo ou uma parábola.

Durante as discussões entre as escolas filosóficas do séc. III - IV, Zhuang Zi aparece dizendo não haver motivo para dar razão a uns e não a outros. Ao pretenderem conhecer ou afirmar o que quer que seja, todos os pensadores propõe um ponto de partida e uma visão de mundo específica. Zhuang zi ao contrário, se apresenta como alternativa de não tomar partido, de nada afirmar. Essa perspectiva pode nos parecer passiva a priori, porém o que o autor parece propor, é apontar que o verdadeiro Tao está na igual possibilidade dos extremos. O “ justo meio” proposto por Zhuang Zi é o oposto do “meio termo”, vivendo não pela metade mas permitindo experienciar a fundo as alternativas propostas.

François Julien explica o assunto em “O sábio não tem ideias”, afirmando que podemos ser o mais apaixonado ou o mais impassível, podemos nos entregar completamente em uma festa ou abraçarmos a solidão, nos consagrarmos ao trabalho em um dia e nos dedicarmos ao prazer no dia seguinte, desenvolvendo ao extremo as duas alternativa. Através de suas parábolas, Zhuang Zi não se detém em nenhuma posição, não se apega a nenhuma ideia. Sua posição frente a um mundo polarizado de ideias fixas se vê como alternativa saudável para equilibrar as diversas vozes que competem por aceitação social. Ao buscar o princípio do discurso desmontando a cosmovisão que o sustenta, Zhuang Zi nivela os pontos de vista, considerando as variadas possibilidades apresentadas como válidas. Existe muito para ser entendido sobre os escritos desse autor, ao buscarmos a profundidade do ensino primeiro devemos garantir a compreensão da base.

Neste momento, as parábolas aparecem como ferramenta de dupla natureza, evidenciando e escondendo, sendo ao mesmo tempo atrativas: enquanto instrumentos de ensino; e penosas testando a disposição daqueles que as ouvem. Um chiaroscuro que define seus objetos sem usar linhas de contorno, mas principalmente pelo contraste entre as tonalidades do objeto e do fundo.

 

A luz que cega - tão evidente que oculta

A palavra parábola - do grego parabolê, no sentido de “comparação” trata-se de uma narração alegórica que, por meio da comparação ou analogia, transfere a expressões linguísticas manifestadas, valores outros, significativos de ordem moral ou de regra de conduta. A narração, chamamos o “corpo da parábola”–o tecido linguístico discurso–; a moral, chamamos a “alma da parábola”–a produção de efeitos de sentido do texto. Enquanto a didática moderna tende a ilustrar a explicação através de uma única experiência subjetiva, a parábola apresenta-se como uma história ficcional, na qual o ouvinte se relaciona. Assim, a parábola exige muito mais da experiência cotidiana e da lógica do que a ilustração, engajando a audiência e nutrindo o pensamento crítico. 

Justapondo o familiar com o não-familiar, ou contornando o ordinário com o extraordinário, parábolas podem ilustrar ideias que a linguagem ou o raciocínio comum dificilmente explicariam. Empregar tal forma de discurso parece trazer um enorme ganho para simplificar ensinamentos que em primeira instância parecem vagos ou abstratos.

O corpo da parábola é construído apoiado no conhecimento popular, costumes (casamento, banquetes, velórios), ambientes físicos (geografia, tempo, fauna e flora), e ocupações (pescar, cultivar a terra, cortar lenha, cozinhar). Essa prática garante que a parábola e a mensagem se conectem com a experiência real, sendo compreendida e memorável.

Como dispositivo da linguagem a parábola pode buscar a resolução para uma questão, ou o extremo oposto, criando uma dificuldade.  Quando se propõe a criar uma dificuldade, essa se apresenta através de um elemento consternador. Tal elemento não está escondido na mensagem da parábola, mas se apresenta no corpo da história.

O elemento consternador tem um efeito positivo no processo de aprendizagem, pois provoca o pensamento crítico, desafiando o senso comum e forçando o ouvinte a reconsiderar se o valor popular comumente aceito se aplica à situação proposta. Dessa forma, o elemento consternador leva o ouvinte a um conflito interno que intensifica o pensamento. Por fim, uma ideia desafiadora e provocativa tende a ser memorável. É essencial esclarecermos aqui que nem todas as parábolas criam dificuldades ou são pensadas para esse fim, algumas delas encontram-se em perfeita harmonia com a vida diária. Assim, Zhuang Zi não se limitava a um tipo de parábola, mas como um mestre do gênero, tinha todo o arsenal à disposição.   

É importante ressaltarmos que as parábolas de Zhuang Zi não se apresentam como exemplos propriamente, mas como índices. A filosofia nos ensina desde Sócrates que a partir do exemplo podemos induzir uma generalidade, buscando uma definição abstrata. O índice, por sua vez, ao se apresentar, remete a um fundo oculto, que não expressa nenhuma pretensão de generalidade. A indicialidade dessa consideração está em que ela deixa entrever, delineando o caminho, por mais fútil ou simples que este pareça.

           

O carpinteiro Shi

Teríamos ido longe na China, tomados por uma curiosidade talvez ingênua, para ver como se pensa “em outro lugar”, buscando uma voz outra que não ecoasse a Grécia ou Roma. Estas, como em Aristóteles, prendem-se a pertinência das diferenças. Todo o enunciado perde sua capacidade referencial se não estivermos “em condição de conhecer as diferenças”.

Zhuang Zi, enquanto pensador taoísta adota uma posição inversa pretendendo dissolver o ponto de vista advindo; erradicando as possibilidades das disjunções. Ao invés de progredir e se confirmar buscando convencer (como espera-se de um discurso), aqui ele é chamado em sentido inverso, a se liquidificar cada vez mais. Para o pensador taoísta, tudo depende do que se compara, nada é determinável em si e por si, negando um parti pris do seu próprio pensamento.

Partindo desse pressuposto e respeitando a métrica proposta para esse artigo, selecionamos uma parábola que exemplifica essa abordagem e que pode nos ensinar como pensar o mundo atual, onde o discurso polarizado parece nos ensurdecer e nos esmagar em nossos próprios pensamentos, impossibilitando considerar o ponto de vista alheio.

A parábola selecionada consta no capítulo IV, denominado No mundo dos homens (chinês: 人間世), após apresentar as questões que norteiam a obra nos primeiro três capítulos, Zhuang Zi então se debruça sobre as parábolas, aproximando seu pensamento da rés-do-chão. Segue toda a parábola:

“Certo carpinteiro Shi viajava para o Estado de Qi. Ao chegar ao Círculo Interno, viu uma árvore sagrada no templo. Ela era tão grande que sua sombra podia abrigar um rebanho de vários milhares de cabeças. Tinha centenas de palmos de circunferência e subia a oitenta pés antes de abrir os ramos. Uma dúzia de barcos poderiam ser cortados de seu tronco. Em multidões as pessoas paravam para olhá-la, mas o carpinteiro nem a notou e prosseguiu em seu caminho sem mesmo lançar um olhar para trás. Entretanto, o aprendiz olhou-a bem e quando alcançou o mestre disse: 

- Desde que manejo a machadinha em seu serviço nunca vi uma peça de madeira tão esplêndida. Por que razão o senhor, Mestre, nem mesmo se deu ao trabalho de parar para olhá-la?

- Esqueça-se dela. Não merece que conversemos a tal respeito -  replicou o mestre.

- Não serve para nada. Transformada num barco, afundaria; num caixão de defunto apodreceria; em  mobília, quebrar-se-ia facilmente; numa porta, racharia; numa coluna seria devorada pelos vermes. Não é madeira de qualidade e não é útil: por isso chegou aos nossos dias presentes.

Ao chegar em casa, o carpinteiro sonhou que o espírito da árvore lhe aparecia e lhe falava do seguinte modo:

- Com que pretendeu comparar-me? Com madeira suave? Olhe para uma cerejeira, uma pereira, uma laranjeira, uma ameixeira e outras árvores frutíferas. Mal seus frutos amadurecem são esbulhadas e tratadas com indignidade. Os grandes galhos são retirados, os pequenos ficam quebrados. Assim, devido ao próprio valor dessas árvores, elas sofrem enquanto vivem. Não podem viver o período de vida que lhes é concedido, mas perecem prematuramente porque destroem-se pela (admiração do) mundo. O mesmo se dá com todas as coisas. Muitas vezes estive em risco de ser decepada, porém finalmente alcancei o que desejava e assim tornei-me excessivamente útil a mim mesmo. Tivesse eu prestado para alguma coisa e não teria chegado à altura a que cheguei. Demais tanto você como eu somos coisas criadas. O que adianta criticarmo-nos mutuamente? Um sujeito que não presta para nada em perigo de morte iminente e uma pessoa indicada para falar de uma árvore que não presta para nada?

Quando o carpinteiro Shi acordou e contou o sonho que tivera, o aprendiz disse:

- Se a árvore ansiava por ser inútil como foi que conseguiu tornar-se uma árvore sagrada?

- Psiu! - respondeu o mestre.

- Fique calado. Ela simplesmente refugiou-se no templo para fugir ao abuso dos que a não apreciavam. Se não tivesse se tornado sagrada quantos não teriam desejado cortá-la! Além disso, os meios que adota para sua segurança são diferentes dos outros e criticá-los pelos padrões ordinários será ficar bem longe do objetivo” [Chuang Tzu, cap.4, p. 36].

Uma das grandes temáticas de Zhuang Zi a respeito do que chamamos hoje de perspectivismo é justamente debater a utilidade e a inutilidade das coisas. Diversas parábolas apresentam o mesmo motivo ao longo da obra, e a que selecionamos talvez seja uma das que melhor trata deste conceito.

Aqui, um lenhador debate com seu aprendiz sobre a “utilidade” da árvore para a feitura de algum utensílio humano: um barco, uma porta ou um caixão. Por não possuir madeira de qualidade, a árvore não servia ao propósito do lenhador. Em sonho, o espírito da árvore se revela, e questiona o lenhador em sua perspectiva. A não serventia da árvore era justamente seu caráter mais excelente e a razão de ainda continuar viva. Apresentando para o lenhador uma nova perspectiva que o faz repensar sua visão inicial.

O essencial da reflexão filosófica de Zhuang Zi sobre a relatividade da linguagem e da razão discursiva se apresenta nesta parábola. O autor não fala do discurso em termos absolutos de “verdadeiro ou falso” , mas sim em termos de “é isso / não é isso”.

Anne Cheng, em seu história do pensamento chinês (2008) fará a seguinte pergunta: O que é que permite decidir que alguma coisa é isso ou não é? Em Zhuang Zi semelhante afirmação nada mais faz senão abrir uma perspectiva própria ao locutor, ela não vale senão para ele e no interior dessa perspectiva apenas. Tal movimento, é o que Zhuang Zi afirmar acontecer com todas as diferentes correntes de pensamento de seu tempo e que ele próprio se esforça em rejeitar sem dar valor a nenhuma delas. Que faremos nós então a partir daí? Reconhecemos o relativismo em tudo e abraçamos o niilismo e o ceticismo como filosofia? Deixamos de crer e agir na nossa realidade postulando que tudo é só uma visão de mundo? Não é isso que o pensamento chinês nos propõe. François Julien, nos presenteia com a seguinte consideração:

“O pensador taoísta, passa pelos argumentos relativistas, mas sem se prender a eles. Não os supera propriamente, mas evita-lhes a exclusiva. [...] se as contraditórias forem então todas elas verdadeiras simultaneamente para o mesmo sujeito, é manifesto que todas as coisas, sem exceção, serão um. Mas o pensador taoísta retoma assim a  tese: tudo é um e eu o digo; a partir do momento em que se diz, esse dizer é um adicional ao um , por conseguinte ele o nega. Não podemos nos ater nem à tese relativista nem a seu contrário, pois ela também é disjuntiva e seu resultado - ainda que trate do monismo - também é parcial [Julien, 2000, p. 192].

O “tudo é um” logicamente nos aproxima de um relativismo que embaralha nossa percepção tanto do real como da conduta: o que resultaria na indiferença, cada ser então poderia agir como bem entendesse, sem que houvessem valores comuns. A sabedoria taoísta por sua vez abre uma nova via interpretativa, visando não apagar nem afirmar a diferença (como propõe a ontologia em oposição ao relativismo), mas em acolhê-la, abraçando seu caráter circunstancial. Sabendo que todas as diferenças no fundo se equivalem, percebemos seu fundo comum.

 

Conclusão

Considerando o papel pedagógico das parábolas taoístas e comparando o período dos Reinos combatentes e das escolas de pensamento com o nosso período atual, percebemos a contribuição que a sabedoria chinesa pode nos trazer para responder questões práticas que dizem respeito a identidade e alteridade. Ao optar por não abolir a diferença, nem afirmá-la categoricamente, o pensador chinês sabe que a diferença é por onde nos acordamos com a realidade.

Para o sábio chinês, servindo-se do relativismo para romper a disjunção, ele reconhece tenta reconhecer em cada situação apresentada uma validade de conjunto. Seu mundo não é confuso, nem tampouco discordante, mas coerente. Em Julien vemos:

“A neutralização das disjunções tornou o sábio disponível, e essa disponibilidade o torna capaz de se conformar tanto melhor a tudo o que vem a ele, de se amoldar à lógica de cada assim. Atolado em suas disjunções, o sábio mantém com o mundo uma relação ao mesmo tempo íntima e descontraída. Não se colam nem abandona; não renuncia, nem se envisca. Evolui nele” [Julien, 2000, p, 202].

Muito podemos aprender com a postura proposta por Zhuang Zi em sua obra, melhorando nossas relações com os outros e com o mundo ao nosso redor. Considerando as perspectivas alheias e não nos apegando às nossas como verdades universais aprendemos a consentir na diferença. É esse plano comum de onde partem as ideias e as discussões, de onde por fim partem as diferenças que formam o mundo, e o mundo é formado de um pouco de tudo.

 

Referências:

Guilherme Henrique Gooda Antônio é doutorando em Comunicação pelo PPGCOM-UNESP, Bauru, onde pesquisa cultura oriental e suas manifestações midiáticas.

Cleiton Calebe da Silva Guerra é mestrando em Literatura Clássica Chinesa pela Universidade de Wuhan, onde pesquisa o pensamento crítico literário chinês.

CHENG, Anne. História do pensamento chinês: tradução de Gentil Avelino Titton. - Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.

CHUANG TZU: ensinamentos essenciais. Traduzido e organizado por Sam Hamill e J. P. Seaton. São Paulo. Cultrix. 2005.

JULLIEN, François. Um sábio não tem idéia: Tradução Eduardo Brandão. - São Paulo: Martins Fontes, 2000.

2 comentários:

  1. Boa tarde.
    Parabéns pela escolha do tema e a forma como o apresentaram!
    Ainda que não seja a premissa do texto discutir os usos didáticos das parábolas, gostaria de saber se vocês já trabalharam em sala aula com este tipo de material/fonte histórica e como foi a recepção do alunado com a leitura e os possíveis diálogos culturais que ele fomenta?
    Att.

    Jessica Caroline de Oliveira

    ResponderExcluir
  2. Olá!
    Muito interessante o texto!
    Como vocês afirmam em seu artigo, as parábolas chinesas podem nos ajudar a responder questões práticas. Elas também poderiam ser utilizadas em sala de aula para, por exemplo, desconstruir estereótipos em relação a cultura chinesa?

    Atenciosamente,
    Márcia Rohr Welter

    ResponderExcluir

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.