O IRMÃO LEAL E O BOM VIZINHO – A COREIA E O LESTE ASIÁTICO ENTRE OS SÉCULOS 14 E 17
A morte do imperador mongol chinês, Kublai Khan, em 1294 engendrou uma série de disputas pelo trono da dinastia dos Yuans, afrouxando a dominação e controle sobre outras áreas do leste asiático. Em meados do século 14, a China começou a entrar num período de declínio e fragmentação da sua unidade política, e foi ocupada pelas suas fronteiras por novos povos que visavam o poder. No sul da China, um líder chamado Zhu Yuanzhang fundou uma nova dinastia, a Ming (1380 – 1644) visando restaurar a antiga glória dos tempos da dinastia Tang (618 - 907) e a expulsar os povos considerados bárbaros, como os mongóis de Yuan. Para a perspectiva do reino coreano de Koryo (ou Goryeo, 918 - 1392), a desordem no leste asiático revelou uma oportunidade de recuperar sua plena independência e soberania.
Diante da desordem nos anos finais do império chinês, o rei Kongmin (ou Gongmin) (r. 1351 – 1374), último soberano coreano que foi endossado pelos chineses Yuans, perseguiu todos aqueles ligados ou aliados aos chineses e buscou rapidamente estabelecer novas relações diplomáticas com os Mings. Nesse sentido, Kongmin recuperou a autonomia e boa parte dos territórios a nordeste que estavam sob a direção dos Yuans.
No plano político coreano, o momento decisivo adveio em 1392. Foi quando as forças e partidários de Yi Seong-gye ocuparam a capital de Koryo, Kaesong, e destronaram o rei Gongyang (r. 1389 - 1392) que fugiu para a cidade de Wonju (e depois onde seria assassinado juntamente com todos de sua família). Apoiado por neoconfucianos reformistas e militares, Yi Seong-gye foi entronizado em 5 de agosto de 1392 como o primeiro rei da dinastia Joseon (ou Choson), sob o venerável nome de Taejo (r. 1392 - 1398).
Embora os eventos tenham sido dramáticos, não houve significativas perdas humanas e conflitos. A dinastia provaria ser uma das mais longevas da história asiática, pois teria seu termo apenas em 1910. E seu nome, Joseon, foi decidido após consultas com eruditos neoconfucionistas coreanos e chineses, nome que remetia ao antigo reino de Dangun, o lendário fundador do primeiro reino coreano situado no terceiro milênio antes de nossa era. Em 1394, a capital da nova dinastia foi mudada para Hanyang (“Fortaleza no rio Han”, 한성), na região central da península coreana e perto da foz do rio Han [Han, 2013, p. 139], abandonando-se a antiga Kaesong. Em dias atuais, uma vibrante megalópole de 20 milhões de habitantes, Seul. Há relatos de que quando fundada, demorou-se anos para cercar com magníficas muralhas de 17 km de extensão e 6 metros de altura cujas quatro entradas apontavam para os pontos cardeais. Atrás dos muros, tudo foi construído conforme um planejamento urbano e respeitoso aos princípios da geomancia do feng shui.
O quarto rei da dinastia Joseon destacou-se na história coreana. Sejong, o Grande (r. 1418 – 1450) figurou como líder ideal dos confucionistas. Entronizado em 1418, Sejong consolidou a ordem e grandeza do reino coreano, numa época em que a China da dinastia Ming (1368 – 1644) se estabeleceu em todo o leste asiático, e as boas relações com os chineses foram mantidas e reforçadas, além da natural afinidade ideológica confuciana. Sejong se beneficiou por ter tido um antecessor, o rei Taejong, que eliminou os impedimentos e rivalidades políticas. Ademais, Sejong teve experientes e veteranos oficiais e funcionários como conselheiros e ministros.
Na política externa, Sejong avançou ainda mais ao norte, entre os povos jurchens, ancestrais dos manchus, e ali estabeleceu uma série de fortes e postos de observação. Isso decorreu de sua eficiente política militar e de segurança, que buscou favorecer as opiniões nacionalistas de seus conselheiros mais graduados, além de ter fomentado incentivos para inovações técnicas no campo bélico como na inovação de canhões e meios mais eficientes de armas de flechas, morteiros e armas de fogo. A ofensiva coreana ao norte foi coroada de sucesso depois das campanhas do general Kim Jongseo (1383 - 1453) que empurrou as fronteiras até o rio Songhua.
Em maio de 1419, Sejong, sob o conselho e orientação de seu pai, Tejong, organizou uma ampla frente ofensiva ao sul, chamada de Expedição de Gihae Oriental (em japonês, Invasão de Ôei), com o objetivo de desarticular a ação de piratas japoneses a partir da ilha de Tsushima. O resultado foi mais de 200 japoneses mortos e mais de 100 feridos, com estimativas um pouco maior do lado coreano. Em setembro, a trégua adveio e foi assinado o tratado de Gyehae, em que o reino coreano conseguiu o pagamento de tributos o líder (daimiô) e sua clã de Sô da ilha de Tsushima. Em troca, os coreanos prometeram manter as relações comerciais entre o Japão e a Coreia [Pratt, 1999, p. 255]. Após esse tratado firmado, e com as relações cordiais mantidas com a China, a política coreana fundamentou-se no preceito confucionista de Mêncio (372 a. C. – 289 a. C.), sadae gyorin (사대 교린), “relações de respeito aos grandes e boa vontade com os vizinhos”. Em outras palavras, respeito à China, e política de boa vizinhança com o Japão, os jurchens e as ilhas meridionais de Ryukyu e além no Sudeste Asiático. Foi esse princípio que serviu de base para a política externa coreana durante os próximos séculos.
Para fomentar a cultura, as artes e o conhecimento, causas demandadas pela classe dos neoconfucionistas no corpo dos funcionários e na corte, o rei Sejong promoveu a criação de institutos de debates e estudos, o Chipyonjon (“Simpósio dos Dignos”), em que as mais capazes e brilhantes mentes coreanas se reuniram com frequência. Um dos resultados mais notáveis desses encontros foi a criação de um sistema de escrita alfabética coreana de 26 letras, o hangul, em 1446. Embora guardasse o venerado respeito à escrita chinesa que foi mantida como sinal de status e erudição, o hangul foi proclamado pelo rei Sejong visando facilitar o acesso às letras pelas pessoas e criar uma fonte de identidade coreana. No veio entusiástico das reformas culturais feitas, Sejong escreveu e publicou inúmeros livros em hangul, muitos deles de traduções de obras clássicas chinesas sobre o confucionismo, budismo, ritos, ética, agricultura e sericicultura (criação do bicho-da-seda). As publicações floresceram diante das melhoras notáveis da impressão metálica. No campo dos estudos, foram aprimorados os estudos astronômicos, instrumentos de medição e cálculo pluviométrico e de observação. Tudo isso estava relacionado ao vivo interesse de Sejong em promover e melhorar a agricultura coreana. E, de fato, parece que a população coreana aumentou para cerca de 5 a 6 milhões de pessoas no século 14.
Apesar desses avanços, o sistema de tributação do reino de Joseon apresentou problemas notáveis. Muitos membros da sociedade começaram a ser isentos de cobranças. A classe dos yangbans (funcionários públicos, oficiais militares e latifundiários que exemplificavam o ideal confucionista de um literato) tinham um pesado tributo que era repassado à classe camponesa de suas propriedades. E quase um terço da população era de escravos, os nobi, tanto do Estado quanto particulares, que não tinham condições de serem cobrados além de suas pesadas obrigações.
A estabilidade coreana passou por momentos turbulentos a partir de 1452, quando Danjong (r. 1452 – 1455) reinou por apenas três anos antes que seu tio ambicioso tomasse o poder monárquico da dinastia de Joseon. Suyang (1417 – 1468) e mandasse assassiná-lo em 1457. Suyang, uma vez como rei, passou a ser postumamente referido como rei Sejo (r. 1455 - 1468), e seu reinado passou por grandes questionamentos de lealdades. Apesar disso, Sejo mandou compilar e codificar as legislações anteriores num novo código, o Kyongguk taejon. Esse código estruturou o Estado e os estamentos sociais e econômicos da monarquia, baseados nos escritos neoconfucianos e a favorecer a classe de letrados dos yangbans.
O golpe dado por Sejo foi motivo de acirrados debates e conflitos entre a classe confuciana, que acabou se polarizando em dois campos partidários: aqueles que apoiaram o golpe defendendo o princípio da prevalência do poder a prevalecer sobre a fragilidade do poder do soberano, contra aqueles que defenderam o princípio da regra de direito, que enfatiza a legitimidade a não ser rompida e descontinuada por golpes. Entre esses dois grupos opostos, seis eruditos partidários do rei deposto, Danjong, foram perseguidos e mortos em 1455. Esses passaram a ser referidos como os “Seis Lealistas Martirizados” (sayuksin) e os outros seis eminentes eruditos contrários que sobreviveram ficaram conhecidos como os “Seis Lealistas Vivos” (saenggyuksin).
Esses dois grupos de lealistas, com o passar dos tempos, passaram a se tornar figuras históricas de inspiração para a defesa da monarquia de Joseon. Em fins do século 14, um novo grupo de letrados yangban, simpatizantes dos lealistas martirizados, passou a defender com maior vigor o princípio do governo pelo direito, e a acusar as tomadas do poder por golpe como o fez o rei Sejong. Muitos desses eram de classes ascendentes, ingressos na classe dos yangbans, e distantes das tradicionais famílias coreanas. Isso refletiu a mudança da política educacional coreana no século 14, que permitia mesmo nas províncias e distante da capital a candidatos alcançar o status de funcionário por meio do mérito nos exames admissionais. A grande parte desses ingressantes vieram das regiões distantes do sul da península, e se inspiraram nos versos de lealdade escritos por Jeong Mong-ju (1338 – 1392). Essa nova geração, de origens mais humildes das províncias e do campo, passou a ser chamada de sarim, ou letrados rústicos.
A contrapor os membros do sarim, havia aqueles dos letrados que eram mais conservadores e defenderam o direito da tomada do poder pela força, sublinhando a necessidade de um forte líder em tempos de crise e desordem. E foram membros desses últimos, mais atuantes na corte e na capital que passaram a denunciar e perseguir os membros sarim em uma série de expurgos em 1498, 1504, 1519 e 1545. Foram mais de 1500 literatos purgados, isso de acordo com um historiador sarim que acabou ele mesmo sendo destituído de seu cargo público. E pertencente à mesma classe dos letrados rústicos, Jo Gwangjo (1482 – 1520), tentou defender a ampla reforma do Estado de Joseon a buscar as puras virtudes confucianas sem privilégios e partidarismos (seonbi). Essas tentativas de reformas frustradas e mantido o sistema de privilégios a favor dos partidários do rei acabou resvalando para rebeliões nas camadas marginalizadas e no campo. Um desses líderes do interior, Im Kkeokjeong (? – 1562), filho de açougueiro, organizou exércitos de leais, escravos, rebeldes e bandidos, que fustigaram e roubaram de viajantes abastados nas estradas do interior [Hwang, 2017, p. 65].
Alguns grupos de yangban pertencentes ao sarim, os letrados rústicos, abandonaram qualquer pretensão política e foram morar no interior, escrevendo, ensinando e estudando em locais remotos ou em grupos organizados chamados de seowon (서원), espécie de escolas e mosteiros neoconfucionistas. Primeiramente fundado em 1542 na instituição do Sosu Seowon, essas instituições depois cresceram em grande número para mais de uma centena ao final do século. Há relatos de que havia mais de mil desses no século 19. E acabaram com o tempo se tornando nas bases de poder dos intelectuais sarim pela Coreia. Apesar de ter um apelo da erudição e da construção crítica, muitos estudiosos dessas instituições se voltaram para questões metafísicas, a buscar os princípios cósmicos e da inserção humana na natureza, para longe do mundo social e político.
Nos anos finais do século 16, a ascensão de outro ambicioso líder guerreiro nas ilhas japonesas ao leste trouxe consequências para a península coreana. Toyotomi Hideyoshi (1536 – 1598) fez sua notável carreira ao subjugar os seus rivais pelo controle efetivo da maior das províncias japonesas. Satisfeito seu apetite no âmbito interno, Hideyoshi então projetou seus planos para o outro lado do Estreito de Tsushima. Uma das razões para as invasões sobre a Coreia foi a demanda crescente do mercado japonês de grãos, linho e algodão coreano, além dos estimados artesanatos como as cerâmicas envidraçadas. Para tanto, Hideyoshi passou a exigir do reino Joseon uma retomada maior do fluxo comercial, algo que tinha sido restringido há décadas depois da ação de piratas japonesas na costa meridional coreana. A resposta desinteressada das autoridades coreanas provocou a ira e expedições começaram a ser organizadas a partir de 1592. Além disso, havia a consideração do rei de Joseon em consultar as autoridades chinesas Ming, já que mantinha com eles as devidas relações tributárias. Assim, Hideyoshi mobilizou cerca de 200 mil homens na primavera do referido ano, ano chamado de Imjin de acordo com o calendário chinês, e as tropas japonesas sob o comando de Konishi Yukinaga, começaram a desembarcar em Pusan (ou Busan) na costa meridional coreana [Turnbull, 2002, p. 48].
De fato, o reino coreano não estava preparado para os eventos da guerra, pois há décadas viveu no sistema de paz ordenado pelas autoridades chinesas no leste asiático. A classe dos yangbans e os escravos estavam isentos do serviço militar, e os camponeses e plebeus pouco treinados e desmotivados. Por contraste, os japoneses eram veteranos de combate depois de anos de guerra civil no período chamado de Sengoku Jidai, “Período dos Estados Beligerantes” (c. 1467 – c. 1607) na história japonesa [Macedo, 2017, p. 83]. Apesar de terem o pleno domínio da produção de canhões, o lado coreano pouco ofereceu de resistência inicial. Apenas três semanas depois de Pusan, os japoneses já tinham ocupado a capital, Hanyang, que provocou a fuga do rei e sua corte para perto da fronteira com a China no rio Yalu.
Desesperado, o rei coreano Seonjo (r. 1567- 1608) foi buscar então ajuda do imperador chinês da dinastia Ming para pedir reforços e apoio. Depois de meses de hesitações, os chineses mobilizaram-se para a fronteira norte coreana. Isso ainda se deu depois dos japoneses terem avançado ainda mais ao norte de Hanyang e saqueado a cidade de Pyonggyang em julho de 1592 e ocupado todo o nordeste da península [Turnbull, 2002, pp. 72-73]. Depois de algumas batalhas inconclusivas, o lado japonês ofereceu propostas de cessar-fogo, exigindo condições duras de paz. Os termos foram prontamente rejeitados pelos representantes coreanos, pois rejeitaram a presença e controle de japoneses nas estradas e no interior coreano. Foi nesse sentido que a classe de letrados dos yangbans, parte deles sarim que viviam e atuavam no meio interiorano, passaram a organizar com milícias locais forças de guerrilhas voluntárias. Embora não fossem treinados como a classe dos samurais japoneses, esses guerrilheiros coreanos demonstraram um notável senso de lealdade confuciana para o rei coreano e contra os invasores.
Não foi somente em torno dos guerrilheiros que se deu a resistência coreana. A frente marítima foi notavelmente organizada por um dos comandantes da Marinha na costa sul, que desempenhou papel decisivo contra a situação de emergência coreana. O almirante Yi Sunsin (1545 – 1598), apesar de nunca de ter tido antes experiência no mar, foi depois comparado a grandes líderes navais na história como o almirante inglês Horatio Nelson (1758 - 1805). Visando conter as frequentes incursões de piratas japoneses, ele passou a usar navios inovadores de guerra, feitos de madeira e ferro, depois chamados de Navios Tartaruga (geobukseon, 거북선). Essas embarcações foram usadas em várias ocasiões desde o século 15 ao 19 na história coreana, e eram característicos por serem revestidos com placas de ferro e munidas de canhões.
Considerando que as tropas japonesas dependiam das linhas de suprimento ultramarinas para abastecimento, as batalhas navais do almirante Yi, ao almejarem os navios japoneses durante as invasões de Imjin, foram determinantes. Nas batalhas inicias, como as de Okpo e de Sacheon (1592) o almirante Yi conseguiu atrair a frota japonesa para baías estreitas da costa sul da península. Depois do seu sucesso em batalha, foi nomeado em 1593, como nomeado como comandante das forças navais coreanas de várias províncias meridionais. De fato, as proezas de Yi foram tão impressionantes que mesmo os japoneses, na Guerra Russo-Japonesa de 1904-1905 realizaram rituais cerimoniais a ele como um deus da guerra antes das batalhas no Estreito de Tsushima que aproxima a península do arquipélago japonês.
As mudanças na Guerra Imjin começaram a mudar nos meses iniciais de 1593, quando os chineses enviaram tropas em grande escala para reconquistar as cidades coreanas de Pyongyang e Hanyang. Após impasses e campanhas desgastantes para as forças japonesas, fustigadas pelas guerrilhas e vendo privadas do suprimento naval, apresentaram possibilidades de negociações. No verão de 1593, foi declarada uma trégua entre as partes conflitantes. A ajuda primordial dos chineses Mings não seria esquecida pelos coreanos. Mesmo assim, a condição de paz não satisfez por completo nem a ambição de Hideyoshi, nem os Mings reconheceram o poderio crescentes dos japoneses sobre os coreanos, considerados como tradicionais parceiros e aliados tributários.
Depois de quatro anos, em 1597, as negociações ainda estavam pendentes. Para os generais japoneses, Yi Sunsin, agora comandante supremo de todas as forças navais coreanas, era considerado com respeito e temor. Para tentar contornar o almirante, os japoneses chegaram a enviar espiões para fornecer-lhe informações e pistas erradas da localização das forças invasoras japonesas. Dotado de senso militar e veterano de guerra, Yi soube não confiar nas fontes passadas, e foi considerado por muitos da corte de Joseon como desprovido de bom senso e, assim, foi destituído de seu cargo de comandante. As consequências disso foram evidentes, a marinha coreana passou a apresentar claros problemas de comando e coordenação de sua frota. Sem comando, os navios japoneses passaram a desembarcar na costa coreana, resultando em avanços terrestres japoneses contra as forças chinesas e coreanas.
Ciente da grave situação, a corte coreana voltou atrás e nomeou Yi Sunsin novamente como comandante supremo da Marinha. Yi, uma vez de volta ao cargo e conhecendo o número de navios em operação buscou fazer o impensável. Tinha apenas 12 navios de guerra sob seu comando a enfrentar mais de 50 dos japoneses. A batalha naval de Myeongnyang ocorrida em fins de outubro de 1597 talvez seja considerada como uma das mais heroicas da história. Diante das condições adversas e com inferioridade numérica, Yi conseguiu fazer uso do conhecimento geográfico das baías e estreitos da costa sudoeste coreana para enfrentar os japoneses em mar. Os relatos históricos em tempos posteriores não entram em consenso sobre os números japoneses. Mas o fato é que Yi Sunsin enfrentou um adversário superior em número e conseguiu a proeza de ter vencido com todos os seus 12 navios, concentrados em pontos estratégicos em passagens estreitas e no conhecimento das correntezas. Após algumas semanas, e com a aproximação do inverno, os japoneses aceitaram com humilhação a derrota naval. A vitória de Yi Sunsin permitiu as forças terrestres chinesas e coreanas avançar e atacar os soldados japoneses na península [Hwang, 2017, pp. 68-71]. No ano seguinte, em 1598, Hideyoshi chegou a falecer, e não houve mais nenhum plano das autoridades japonesas de invasão coreana.
A Guerra Imjin, ao final, devastou boa parte da Coreia de Joseon, causando milhares de mortos e dezenas de milhares de prisioneiros além de incontáveis templos, mosteiros, palácios e tesouros culturais destruídos ou pilhados. Nesse quadro desolador, houve uma intensa troca e interação populacional entre coreanos, chineses e japoneses como em poucas ocasiões na história do leste asiático. Estimados 200 mil japoneses e aproximadamente o mesmo de chineses passaram pelo solo coreano. Muitos soldados Ming, por exemplo, se estabeleceram na península e casaram-se com a população local, formando gerações posteriores de descendentes. Muitos prisioneiros de guerra japoneses depois naturalizaram-se e também formaram vínculos com comunidades coreanas. E muitos coreanos, nessa grande e trágica empreitada da guerra, deslocaram-se e se assentaram no exterior. Dezenas de milhares foram trazidos e refugiaram-se no arquipélago japonês, muitos como prisioneiros, sendo que alguns inclusive desses tornaram-se escravos e depois foram negociados com mercadores portugueses em fins do século 16 [Pratt, 1999, pp. 350-351].
Passado aproximadamente meio século, em meados do século 17, os jurchens na fronteira norte da península coreana começaram a consolidar e expandir sua presença na região da Manchúria e partes do norte da China. Depreende-se disso que a dinastia chinesa Ming se encontrava fragilizada e dividida politicamente, algo que amplificou as ações de lideranças rebeldes no âmbito interno e nas fronteiras. Ao oeste, povos muçulmanos passaram a se rebelar sob o comando de Milayin e de Ding Dougong contra o governador regional da província de Gansu e chegaram a ocupar a capital, Lanzhou em 1646 [Rossabi, 1979, pp. 191-192]. Apesar dos dois líderes chineses muçulmanos terem sido capturados, novas rebeliões estouraram em 1650 resultando em consideráveis baixas. Ao sul, os rebeldes chineses foram inspirados a fundar uma nova linha dinástica Ming, a costa chinesa foi controlada por um talentoso pirata chamado de Zheng Zhilong (1604 - 1661) cujo filho, Zheng Chenggong (ou Koxinga), foi adotado pelo imperador local e que depois fundou um reino chinês separado na ilha de Taiwan em 1661 graças à sua vitória sobre os holandeses.
Os problemas dos anos finais da dinastia Ming foram ainda mais sérios nas suas fronteiras ao norte. Os jurchens, agora referidos como manchus, tinham conquistado a península de Liaodong em 1616 sob a liderança de Nurhaci (r. 1616 - 1626) que proclamou o reino tardio de Jin, ecoando a antiga soberania. Feito isso, Nurhaci se encontrou na posição de avançar contra o império Ming que estava em decadência. Na corte coreana, o grupo dos yangbans mais pragmáticos dominaram as decisões políticas e conseguiram a atenção do rei Yi Hon (r. 1608–1623) e passaram a adotar uma postura de neutralidade em relação aos conflitos dos manchus e os Mings. Em 1623, houve um golpe de poder e foi entronizado o rei Yi Jong (postumamente chamado de Injo) (r. 1623–1649) que passou a apoiar aqueles partidários neoconfucionistas mais ortodoxos que insistiam na lealdade irrestrita aos Mings. Com isso foi criada a situação que Nurhaci usou como argumento para as invasões dos manchus ao reino coreano em 1627.
Os eventos na China tornaram-se terminais para o império Ming quando em 1636, o filho e sucessor de Nurhaci, Huang Taiji (r. 1626 - -1636; 1636 - 1643) proclamou sua dinastia como verdadeira sucessora do império chinês e a renomeou como Qing, “Pura”. Diante disso, as autoridades coreanas inicialmente se recusaram a reconhecer a nova soberania e suserania chinesa. E assim tiveram que enfrentar novas invasões de centenas de milhares de manchus, mongóis e aliados em 1636. Em cinco dias, a capital coreana, Hanyang foi ocupada e rendida às forças invasoras que provocou a fuga do rei Yi Jong e de sua corte para as montanhas nas cercanias em Namhansan. Depois de um mês e meio, o rei coreano decidiu se render e, humilhado, se prostrou por nove vezes em frente ao imperador manchu, Huang Taiji, e se declarou como vassalo (ou irmão menor, sadae) da nova dinastia chinesa na assinatura do tratado de Samjeondo [Chan, 2018, pp. 105-106].
A Guerra Imjin e
as invasões manchus trouxeram consequências profundas no reino coreano da
dinastia Joseon. As devastações da guerra foram assinaladas, mas a maior
mudança política se deu na China, onde a dinastia Ming caiu diante dos manchus
em 1644. No Japão, igualmente, houve mudanças políticas centralizadoras desde a
morte de Toyotomi Hideyoshi em 1598. Suas ações esgotaram os recursos do Estado
e enfraqueceu consideravelmente sua rede de lealdades, permitindo a ascensão de
um outro líder japonês após a batalha de Sekigahara em 1600 que estabeleceria
uma dinastia de xoguns (bakufu) no Japão, Ieyasu Tokugawa (1543 - 1616)
[Macedo, 2017, pp. 100-101]. Em termos de política externa, o reino coreano
posicionou-se como vassalo e tributário da nova China dos Qings (manchus), e o
Japão buscou cada vez mais restringir os contatos com os estrangeiros a partir
dos decretos de 1635 (sakoku) na província meridional de Satsuma e da ilha de
Tsushima. E foi pelo representante desta última ilha o único contato oficial permitido
por séculos entre a corte coreana e as lideranças japonesas, na cidade
portuária de Pusan [Kang, 1997, pp. 138-145]. Estava implícito nas relações com
os japoneses, portanto, que os coreanos eram os mais próximos e legítimos
herdeiros dos valores confucionistas e precedência nos protocolos de Estado,
visto que o rei coreano seria recebido na capital do xogunato, Edo (atual
Tóquio), enquanto o maior representante japonês, o senhor de Tsushima, apenas
num bairro da comunidade mercantil japonesa de Pusan. Nesse veio, os coreanos,
até mesmo a desconsiderar os manchus como bárbaros diante dos tradicionais
valores chineses dos Mings, começaram a se considerar como os únicos e
legítimos herdeiros civilizados no leste asiático a partir de meados do século 17.
Referências
Emiliano Unzer
Macedo é professor associado de História da Ásia do Departamento de História da
Ufes. Mail: prof_emil@hotmail.com
CHAN, Robert Kong. Korea-China Relations in History and Contemporary
Implications. Hong Kong: Palgrave Macmillan, 2018.
HAN, Jongwoo. Power, Place, and State-Society Relations in Korea:
Neo-Confucian and Geomantic Reconstruction of Developmental State and
Democratization. Plymouth, Reino Unido: Lexington, 2013.
HWANG, Kyung Moon. A History of Korea. Nova York: Palgrave, 2017.
KANG, Etsuko Hae-Jin. Diplomacy and Ideology in Japanese-Korean
Relations: From the Fifteenth to the Eighteenth Century. Nova York &
Londres: Macmillan Press, 1997.
MACEDO, Emiliano
Unzer. História do Japão: uma introdução. San Bernadino, California: Amazon, 2017.
PRATT, Keith & RUTT, Richard. Korea: a historical and cultural
dictionary. Londres & Nova York: Routledge, 1999.
ROSSABI, Morris. "Muslim and Central Asian Revolts" In:
SPENCE, Jonathan D. & WILLS, John E. Jr. From Ming to Ch'ing: Conquest,
Region, and Continuity in Seventeenth-Century China. New Haven & Londres:
Yale University Press, 1979.
TURNBULL, Stephen. Samurai Invasion: Japan's Korean War 1592–98. Londres: Cassell
& Co, 2002.
Olá professor, excelente leitura muito instrutiva das dinâmicas políticas e culturais do extremo oriente que não costumamos apreciar em sala de aula.
ResponderExcluirUm dos princípios confucianos de preservação da ordem doméstica é a continuidade do mandato do soberano, por direito do céu (tianming), e o dever moral de observância ritual, o respeito às tradições, e aos laços ancestrais. O processo de "confucianização" das práticas polirico-administrativas do mundo sínico, ou sua remodelação e codificação, coincide com momentos de instabilidade política, e especialmente na China de transições violentas entre dinastias reinantes e confliots étnicos/ religiosos, a exemplo: ascenção da dinastia Han, a introdução do budismo, etc.
A pergunta, a estabilidade do período Joseon e a heterogeneidade étnica da península coreana, perto o bastante do território continental da China para receber suas influências, mas longe o bastante para ser privado das escaramuças fronteiriças do restante da Ásia, pode explicar desenvolvimento de uma elite letrada que se via como herdeira pura da tradição chinesa? Seria a noção de pureza étnica, ou um sentimento de superioridade política, tendo em vista a continuidade dinástica, que reforça esta visão, num momento em que a China de vê uma vez mais em instabilidade política?
Uma outra pergunta, o neo-confuciomismo coreano da dinastia Joseon,pode ser interpretado como uma resposta das elites tradicionais letradas à influência crescente do budismo na política Imperial? Grata.
ExcluirHavia esquecido de assinar.
ExcluirAtenciosamente, Pâmella Holanda Marra.
Prezada Pâmella,
ResponderExcluirEntão vamos por partes.
De fato, a dinastia Joseon ascendeu na Coreia ancorada e apoiado por confucianos. O rei Sejong tinha grande prestígio entre os literatos da escola confucionista e ampliou o número de academias e instituições, além de promover os exames imperiais tal como na China da dinastia Ming. O aparecimento do neoconfucionismo coreano guarda vínculo com o ocorrido na China, pois tinham íntima relação entre os estudiosos. Um dos maiores reformadores coreanos do neo-confucionismo será Jo Gwanjo e inspirou vários outros movimentos reformadores que nos séculos 18 e 19 teve ampla repercussão rumo a tentativas de reformas sociais, políticas e econômicas no reino coreano.
Sim, houve notável estabilidade da dinastia Joseon no período considerado, e isso se pautou muito no bom relacionamento com a dinastia chinesa Ming. Quando esta cai em 1644 com os manchus, o padrão é rompido e nova relacionamento é buscado. Em geral, o que se seguiu entre a elite e Estado coreano foi maior isolamento e questionamento sobre a legitimidade da nova dinastia que era considerada pouco aculturada nos cânones confucianos.
Não tenho certeza sobre a questão étnica ou sentimento de superioridade, mas sim mais em termos culturais. A ponto do reino coreano se considerar como o verdadeiro herdeiro dos ensinamentos confucianos frente à nova dinastia manchu a partir de 1644 em diante.
Sobre sua segunda pergunta. O budismo cedo tinha se estabelecido na península, desde o século 4 e tinha se misturado com as crenças xamanísticas populares. O ramo maaiano ganhou maior terreno na Coreia, assim como na China e depois será o vetor por onde parte do budismo entrará no arquipélago meridional japonês. O budismo coreano em grande parte então se manterá entre a população, principalmente no interior, e a elite e meios urbanos mais aderentes ao confucionismo endossado pelo soberano na dinastia Joseon. Alguns regentes e partes da elite confuciana tentaram propor sua erradicação, mas não obtiveram êxito. Mesmo porque, já na dinastia anterior, a de Goryeo (918–1392), o budismo já tinha sido legitimado como sistema religioso. E houve notáveis estudiosos confucianos coreanos que depois buscaram conciliar as diferenças entre o budismo e confucionismo como o popular Gihwa (1376–1433). A rainha regente Munjeong (g. 1545 - 1565) era um devota budista e promoveu a religião pelo reino.
O budismo, no fim do século 16, teve grande popularidade com a ajuda e resistência organizada pelo interior contra as invasões japonesas durante a Guerra Imjin.
Portanto, no geral, acredito que o confucionismo (e todas as suas vertentes reformistas e correntes de pensamento) foi o que serviu de legitimidade dinástica e estruturação social e burocrática durante a dinastia Joseon. O budismo, por sua vez, permaneceu como substrato mais popular religioso coreano. E, como dito, a relação Joseon-Ming cimentou a boa relação entre os dois reinos asiáticos, até mesmo em forma de tributário por parte do reino coreano (como irmão menor, sadae). E com a ruptura dinástica chinesa em meados do século 17 e após as agressões japonesas na Guerra Imjin, o reino coreano passou a se isolar cada vez mais no leste asiático.
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Segue algumas dicas de leitura em caso de interesse:
Sobre o budismo na Coreia e perspectiva do leste asiático:
- “Korean Buddhism in East Asian perspectives” de Sang-hyon Kim
E sobre as relações entre o budismo e confucionismo coreano (e outras religiões):
- “Korean Religions in Relation: Buddhism, Confucianism, Christianity” organizado por Anselm K. Min.
Cordialmente e grato pelo interesse,
Prof. Dr. Emiliano Unzer