Kelly Alves Andrade

 

A II GUERRA MUNDIAL E A CONSTRUÇÃO DO IMAGINÁRIO SOCIAL DAS GUEIXAS NO OCIDENTE


A sexualidade no Japão desperta controvérsia. O prazer sexual era pouco velado e o erotismo integrava a estética sexual numa sociedade que foi moldada sob a égide da honra e reputação, fato que é discutido pela antropóloga Ruth Benedict na obra “O crisântemo e a espada”:

“Os japoneses tornam a sua vida difícil cultivando os prazeres físicos e em seguida estabelecendo um código de preceitos, segundo o qual não deverão os mesmos serem desfrutados dentro de um sistema de vida sério. Cultivam os prazeres da carne como uma arte e, depois, uma vez inteiramente saboreados, sacrificam-se ao dever” [Benedict, cap.9].

Esse “código de preceitos” antagônico citado por Benedict, fica explicito no período Showa (1937 - 1947) quando o exército durante a II Guerra Mundial manteve bordéis formados com mulheres dos países dominados pelo império japonês, em maior número de mulheres sul-coreanas, como uma espécie de “escravas da prostituição”. As “mulheres de conforto” eram usadas para o prazer e divertimento dos militares japoneses, e tal comportamento expõe a objetificação e exploração do corpo feminino no Oriente para fins imperialistas do Eixo, nesse caso, representado pelo Japão, que dominou diversos países e legitimava seu poder através da misoginia para com as mulheres dos territórios submetidos a seu controle imperial, o que analogamente contribuiu para a construção do estereotipo da mulher asiática no Ocidente, sobretudo nos Estados Unidos, de forma hipersexualizada, expondo um dos muitos reflexos da Segunda Guerra, que foi incorporado no imaginário social Ocidental.


As “Gueishas girls” e as consequências do pós-guerra

Nesse mesmo contexto, durante a Guerra do Pacífico Asiática (1941-1945), o termo “Gueixa” assumiu novos significados que vinculara o termo à prostituição. Originalmente, esse termo escrito com os ideogramas “gei” artista e “sha” profissional, na cultura nipônica, serviam para dar nome as mulheres que se dedicavam desde a infância ao estudo da tradição milenar japonesa, e desenvolviam habilidades em diversos aspectos artísticos e/ou culturais. A elite masculina não economizava para ter momentos de conversa e apreciação dos talentos das gueixas em festas ou casas de chá e essas mulheres representavam na sociedade japonesa o ideal de “mulher perfeita” envolvidas nos seus trajes e maquiagem característicos, além de serem símbolos da cultura e tradição, as gueixas também eram símbolos de erotismo, o que conferiu a essas mulheres uma associação com a prostituição pelo senso comum, fato que é explicado por Benedict:

“Uma visita a uma casa de gueixas é mais cara do que a visita a uma prostituta, mas o pagamento efetuado por um homem pelo privilégio de uma noite dessas não inclui o direito de tê-la como parceira sexual. O que obtém é o prazer de ser entretido por moças lindamente vestidas e de meticulosos ademanes, minuciosamente treinadas para o seu desempenho. Para ganhar acesso a uma determinada gueixa, seria preciso que o homem se tornasse o seu patrono, assinando um contrato mediante o qual ela passaria a ser sua amante ou então que a seduzisse com os seus encantos, de modo a que ela a ele se entregasse de livre vontade. Entretanto, uma noite em companhia de gueixas não constitui assunto sexual. Suas danças, sua agudeza de espírito, suas canções, seus gestos são tradicionalmente sugestivos e cuidadosamente calculados para expressarem tudo o que uma esposa de classe superior não pode oferecer. Elas pertencem ao “círculo dos sentimentos humanos” e proporcionam alívio do “círculo de ko” (...) As prostitutas vivem em casas licenciadas e, após uma noite em companhia de uma gueixa, um homem poderia visitar uma prostituta, se o quisesse” [Benedict, cap.9].

No pós-guerra, o território japonês foi submetido à ocupação militar norte-americana, e depois de seguidos ataques e das bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki, o país estava destruído sua população estava faminta, o que deu margem a intensificação da prostituição de mulheres japonesas como forma de sobrevivência. Nesse contexto, surgiram as “Gueisha girls” (apelido dado pelos soldados norte-americanos) eram prostitutas que adornavam-se como gueixas para chamar atenção dos soldados e obterem um pagamento maior pelos serviços prestados, o que contribuiu para reforçar a associação das gueixas com o sexo, porém, devido à situação extrema durante a rendição japonesa, muitas gueixas viram na prostituição a possibilidade de sobrevivência em meio a realidade caótica que havia se instalado no Japão:

“Muitas gueixas haviam largado a profissão e se tornado prostitutas, e as remanescentes tinham de entreter os oficiais e militares de alta patente. Soldados de baixa patente confundiam os papeis das gueixas com o de prostitutas, reforçando o estereótipo anterior a essa época” [Neta, 2015, p.10].

Esse foi um período em que a tradição cultural das gueixas quase foi extinta pela associação com a prostituição, levando a necessidade do governo Japonês em criar ações para a preservação desse símbolo da tradição japonesa. Na década de 50 com o fim da ocupação norte-americana, as gueixas ressurgiram como um símbolo da cultura nipônica, e eram requisitadas como um “cartão postal” do Japão em eventos diplomáticos com outros países como a Inglaterra e EUA para entreter não mais membros do alta sociedade japonesa, agora, usavam seus conhecimentos para encantar autoridades como o presidente  Gerald Ford, primeiro presidente a visitar o Japão após o bombardeio de Hiroshima e Nagasaki e a realeza Britânica.

 

A representação da mulher oriental na literatura ocidental

A combinação das consequências da Segunda Guerra Mundial no Japão e o choque entre culturas com a ocupação estadunidense, reforçou o “orientalismo exótico” carregado de visões preconceituosas e distorcidas da cultura oriental. As mulheres japonesas sofreram com a misoginia, sexismo e a violação de direitos humanos na Guerra, carregando ainda o estigma no Ocidente de que os seus corpos eram um “objeto exótico” que servia ao prazer e diversão dos soldados americanos, o que foi comumente representado na literatura e no cinema, em obras como a história em quadrinhos Babysan escrita por Bill Hume enquanto ele esteve no Japão na década de 50 e conta a história da pin-up japonesa Babysan, que convivia em meio aos marinheiros americanos e cujo nome é um neologismo inglês com forte conotação sexual, uma junção da palavra inglesa “babe” usada para fins de interesse sexual, e “san” um sufixo japonês de tratamento, usado formalmente na língua japonesa ao se dirigir a uma pessoa com respeito.

                         

Fonte: http://raceandcomics.blogspot.com/2013/05/babysan-innocent.

 

Na imagem acima, de uma das páginas do quadrinho, a pin-up Babysan aponta para a imagem de uma gueixa fixada na parede e pergunta ao marinheiro americano: “You think Japanese girls look like this?”, ou seja, “você acha que as japonesas são assim?”. Isso mostra que Bill Hume reconhecia esses “estereótipos sexualizados” em torno das gueixas e a necessidade de diferenciações nesse aspecto, o que converge também ao comportamento adotado pelos Aliados de conhecer a “cultura do inimigo” como estratégia de guerra, em que o exército americano buscava uma imersão na cultura nipônica para entender como era o comportamento de seus adversários e de sua cultura:

“Quer o assunto fosse militar ou diplomático, quer fosse suscitado por questões de alta política ou de volantes a serem lançados detrás das linhas de frente japonesas, todos os dados eram importantes. Na guerra total em que se empenhava o Japão, tínhamos de saber não apenas os objetivos e os motivos dos que se achavam no poder em Tóquio, não apenas a longa história do Japão, não apenas as estatísticas econômicas e militares; tínhamos de saber com o que o seu governo poderia contar da parte do povo. Teríamos de tentar compreender os hábitos japoneses de pensamento e emoção e os padrões em que se enquadravam tais hábitos. Teríamos de conhecer as sanções por trás desses atos e opiniões. Teríamos de pôr momentaneamente de lado as premissas sobre as quais baseávamos nossas ações como americanos e abstermo-nos o mais possível de chegar à fácil conclusão de que, ante uma determinada situação, reagiríamos do mesmo modo que eles” [Benedict, cap.1].

Com isso, analisando essa cena do quadrinho de Babysan (1950) é possível fazer uma análise entre o aspecto das táticas de guerra do exército americano e também a contribuição que essa personagem teve para legitimar a sexualização da mulher asiática, como enfatiza Silva:

“A personagem Babysan é extremamente sexualizada e traz o estereótipo da mulher asiática erótica, lasciva e de condutas moralmente condenáveis. No entanto, uma passagem curiosa dessa história em quadrinhos retrata uma gueixa e enfatiza a diferenciação que deveria ser feita entre uma gueixa e uma prostituta. No entanto, a imagem que acabou fixada no imaginário popular ocidental sobre as gueixas, geralmente carrega esse estigma sexualizado a que estamos acostumados” [Neta, 2015, p.5].

Outra obra da literatura que reforça estereótipos é o romance “Memórias de uma Gueixa” escrito em 1997 pelo estadunidense Arthur Golden. Inspirado na vida de Mineko Iwasaki, o romance narra a trajetória de vida de uma órfã chamada Chiyo que é vendida a uma casa de gueixas (Okyia) e inicia uma dura jornada até se tornar uma das gueixas mais famosas do bairro de Gion, em Kyoto, assumindo o nome Sayuri. Chiyo era uma gueixa que se enquadrava nos padrões de beleza valorizados na sociedade japonesa, por isso, no romance, despertava o desejo e cobiça dos homens da alta sociedade. A obra que também foi adaptada para o cinema no ano de 2005, também aborda as dificuldades enfrentadas pelas gueixas durante a ocupação norte-americana ao fim da Segunda Guerra Mundial e retrata em algumas passagens a relação das Gueisha girls com os soldados. Todavia, o romance foi alvo de críticas por distorções na biografia da gueixa Mineko Iwasaki que processou Arthur Golden pela associação das gueixas com a prostituição e por erros na representação da cultura japonesa, com isso, a própria Iwasaki escreveu sua autobiografia com a ajuda da jornalista americana Rande Brown. A obra “Minha vida como gueixa: a verdadeira história de Mineko Iwasaki” foi considerada pela crítica literária uma réplica do que foi escrito em “Memórias de uma Gueixa”, que busca romper com o imaginário social das Gueixas legitimado no romance de Golden:

“Seu livro representa um rompimento com noções pré-concebidas pelo discurso orientalista e humaniza a imagem da mulher japonesa. Não mais uma massa homogênea criada a partir da visão do Ocidente, mas sim mulheres, indivíduos, com agência e total consciência sobre sua condição no mundo” [Katsuo Hugo, 2018, p.2].

Tendo em vista os aspectos observados no contexto da Segunda Guerra Mundial e como estes construíram conceitos e visões em todo o mundo, o estudo do Orientalismo contribui para romper com padrões estigmatizados a cerca da cultura do Oriente que permaneceu no pós-guerra. Além de esclarecimentos do fazer de uma Gueixa na tradição cultural japonesa e a sua associação com a prostituição, é necessário perceber como essa construção social do papel das gueixas está envolvida no contexto histórico da guerra e do “perigo amarelo” como forma de manter a hegemonia euro-americana frente a Asiática através de discursos e ações que afetaram e afetam a vida das mulheres orientais e permanece nos dias atuais sendo reproduzidos através da mídia e de discursos que reforçam o exotismo da mulher oriental e dos estereótipos que há tanto tempo foram tecidos e enraizados no imaginário social do Ocidente e promovem discursos errôneos e xenofóbicos da cultura Oriental.

 

Referências

Kelly Alves Andrade é graduada em história pelo Centro Universitário São Camilo ES, professora de história da rede estadual de educação (SEDU) e filiada da ANPUH-ES. [kelloshialves@gmail.com].

 

BENEDICT, Ruth. O crisântemo e a espada. São Paulo: Perspectiva, 2009.

KATSUO, Hugo. A mulher amarela como souvenir exótico, 2018. Disponível em: https://medium.com/@hugokatsuo/a-mulher-amarela-como-souvenir-ex%C3%B3tico-67921d44a682.

NETA, Maria do Carmo Oliveira da Silva. A flor e o mundo de salgueiro: As gueixas na história. In: Caravana 25 anos da Anpuh Pernambuco, 2015, Recife. Anais GT Ásia e História. Disponível em:https://www.pe.anpuh.org/conteudo/view?ID_CONTEUDO=2126

6 comentários:

  1. Olá, parabéns pelo seu texto. Adoro a temática sobre as gueixas!
    Na leitura da sua exposição, me surgiu uma dúvida sobre algo que vai além do que escreveu e em um sentido oposto: no Japão foi produzido algum tipo de discurso sobre as mulheres ocidentais? Ou, no imaginário japonês, há estereótipos sobre as mulheres não japonesas? Houve alguma preocupação cultural japonesa de desmistificar essa representação do ocidente acerca destas personagens tão emblemáticas?
    Att.

    Jessica Caroline de Oliveira

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    1. Oi, Jéssica! Agradeço o elogio, é muito bom saber sobre uma historiadora que também tenha interesse sobre essas mulheres que são consideradas guardiãs dos costumes da cultura milenar japonesa. Respondendo a primeira pergunta: Nos meus estudos e bibliografias consultadas, não há algo específico que fale sobre um discurso sobre as mulheres ocidentais no Japão durante a Segunda Guerra, porém, devido aos choques culturais com a Guerra do Pacífico, os dois países construíram visões e estereótipos sobre suas culturas em vários aspectos. Uma leitura muito interessante que posso deixar de sugestão para analisar o lado do imaginário social ocidental no oriente é a monografia escrita pelo Renan Suchmacher, ele faz uma análise sociológica sobre a representação da Segunda Guerra Mundial nos mangás japoneses da época e seu papel ideológico, é um trabalho interessante para entender o outro lado que confronta com o “perigo amarelo” da propaganda estadunidense. Se quiser ler o trabalho: https://pantheon.ufrj.br/bitstream/11422/5257/3/RSuchmacher.pdf. Respondendo a segunda pergunta: Sim, o governo Japonês criou ações para revalorização das gueixas após 1953, fase de intenso desenvolvimento econômico no Japão, mas o estigma criado no período da ocupação americana ocasionou com o fato das gueixas passaram a ser requisitadas para entreter personalidades estrangeiras em visitas oficiais ao Japão, traço que expõe o choque cultural sofrido, pois as gueixas precisaram incorporar novos saberes, como o conhecimento da língua inglesa.

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  2. Pode-se perceber que o papel da gueixa mudou várias vezes ao longo da história. Mas no Japão da atualidade, como essa tradição é preservada? Qual o papel que as gueixas exercem nos dias de hoje?
    Ana Patricia dos Santos

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    1. Oi, Patrícia. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, o Japão foi reconstruído e incorporou valores ocidentais dos EUA. Isso mudou de súbito valores e hábitos na sociedade japonesa, inclusive do papel das gueixas. Na atualidade, ainda existe um reduzido contingente de Gueixas que seguem a tradição de perpetuarem os valores da cultura milenar japonesa. Mas quando se fala do Japão atual, as gueixas também se tornaram símbolos da cultura pop e da indústria cultural, fato que levou a projeção da figura das gueixas no mundo todo, e isso desde a década de 50. No Japão atual, há um contraste entre o reduzido número das Gueixas do lado tradicional que buscam conservar os valores milenares da cultura nipônica e as gueixas do Japão moderno, encontradas em bairros de Tóquio como Nakano e Akihabara.

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  3. Olá, parabéns pelo trabalho.
    Você acredita que os esteriótipos e visões errôneas acerca das gueixas e da mulher japonesa é consequência de uma História Única?

    Att,
    Josefa Robervania de Albuquerque Barbosa.

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  4. Olá, Robervania! Agradeço o elogio. A história única como escreveu Chimamanda reforça estereótipos entre os povos. É possível relacionar a história única com a conclusão do texto em que ressaltei a importância dos estudos sobre Orientalismo para desconstruir essas visões e discursos estigmatizadas do Oriente que foram construídos durante a Segunda Guerra Mundial. Ótima pergunta!

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