UM SACI NO JAPÃO: UMA RESSIGNIFICAÇÃO DO FOLCLORE BRASILEIRO PARA O UNIVERSO DOS YōKAI
Akuma-Kun 悪魔くん é uma série em quadrinhos japonesa criada pelo já falecido Shigeru Mizuki. Reconhecido e popular mangaká (ou manga-ka 漫画家, termo utilizado no meio editorial para designar os autores de quadrinhos japoneses, tanto roteiristas como ilustradores), Mizuki nasceu em 1922, sob o nome de Shigeru Takera, na cidade portuária de Osaka, e como autor de quadrinhos concebeu obras que ainda hoje são sucessos de público como “Terebi-kun” (ou Tv-Kun テレビくん, publicado em 1965 pela Kodansha) “GeGeGe no Kitaro” ゲゲゲの鬼太郎 (lançado originalmente nos anos 1960), “Kappa no Sanpei” 河童の三平 (publicado a partir de 1961), “Hitler” 劇画ヒットラー (sobre a vida do ditador nazista, serializada a partir de 1971), “Nonnonba” のんのんばあとオレ (publicada em 1977 e lançada no Brasil pela Devir) e a obra monumental “Showa” コミック昭和史, uma história do Japão durante o período do imperador Hiroito. Akuma-Kun 悪魔くん foi outra série importante de Mizuki como mangaká, ganhando ao longo do tempo várias versões.
A primeira versão de “Akuma-kun” circulou pelo Japão entre os anos de 1963 e 1964 pela editora Azuma Kōsha. Nos anos seguintes a série ganharia novas versões e reboots (termo que, grosso modo, é aplicado às tentativas de tornar as obras atualizadas para as novas gerações, independente ou não de interesses mercadológicos). Não houve diferentes versões em quadrinhos, mas em animações, jogos eletrônicos e em séries televisivas. A tradicional editora Kodansha publicou uma nova versão, de 1966 a 1967, em um momento em que Akuma-Kun se tornava uma referência importante para a cultura de massas daquele país, ganhando até uma série televisiva com atores humanos. A Shueisha de 1970 a 1971 possibilitaria que Mizuki lançasse outra versão, na Weekly Shōnen Jump, reatualizando a trama para o contexto daquela época. Posteriormente, ganharia uma versão em que o protagonista da série encontra Kitarō (talvez o personagem mais conhecido de Mizuki) em “Kitarō tai Akuma-kun”, de 1976. De 1987 a 1988 teria outra versão pela Kobunsha, sob o título Akuma-kun Seikimatsu Taisen. Depois, pela Kodansha novamente, numa série de 1888 a 1990, e por último uma versão pela Tatsumi Publishing (1993-1994).
O título Akuma-kun pode ser traduzido de uma forma um tanto imprecisa como “Garoto Demônio” ou “Menino Diabo”. Digamos, imprecisa, pois faltam em nossa língua e cultura elementos tradutórios para uma correspondência precisa para Akuma. “Demônio” ou “Diabo” aqui não têm a mesma conotação da figura monstruosa considerada no Ocidente como maligna, dentro de certos pressupostos que vemos em nossa cultura marcada pelo ideário judaico-cristão. “Akuma” estaria na cultura japonesa relacionado ao campo dos Yōkai (妖怪, ようかい), isto é, à esfera das entidades sobrenaturais da cultura popular japonesa e que não podem ser enquadradas de forma taxativa nos rótulos de bem e de mal. Dylan Foster nos aponta (2015, p. 19), em seu The Book of Yōkai, que “Hoje yōkai aparece com frequência tanto na escrita acadêmica quanto na popular, onde (...) é um significante guarda-chuva para coisas que geralmente traduzimos com termos como monstro, espírito, goblin, demônio, fantasma, espectro, ser fantástico, divindade de ordem inferior, ou ocorrência inexplicável” (Tradução livre de “Today yokai appears frequently in both academic and popular writing, where, as noted earlier, it is an umbrella signifier for things we generally translate with terms such as monster, spirit, goblin, demon, phantom, specter, fantastic being, lower-order deity, or unexplainable occurrence”).
Akuma-kun então é uma série que apresenta como personagens um elenco variado dessas criaturas denominadas yōkai, algo que também é comum em outras obras de Mizuki. O autor é apontado por Michael Dylan Foster como o responsável por tornar os yōkai relevantes durante este período pós-Segunda Guerra (2015, p.61). Segundo Dylan Foster, Mizuki fora influenciado por folcloristas como Yanagita Kunio (pai dos estudos sobre cultura popular no Japão), Toriyama Sekien (1712–1788), responsável por uma série de ilustrações sobre os yōkai, e outros estudiosos e artistas que o antecederam. Todavia, conforme Dylan Foster, “foram os mangás e animes de Mizuki que mais transformaram o elusivo yōkai do folclore em personagens yōkai concretos da cultura popular contemporânea e da mídia de massa” (tradução livre de “ultimately it is Mizuki’s manga and anime that most transformed the elusive yo-kai of folklore into the concrete yo-kai characters of contemporary popular culture and mass media.”).
Foster em outro
livro, “Pandemonium and Parade Japanese: Monsters and the Culture of Yōkai”
(2009, p.164-165), destaca que “Para quase qualquer pessoa que cresceu no Japão
do pós-guerra, a palavra yōkai evoca uma imagem criada por Mizuki Shigeru
(...). Mizuki não apenas produz mangás, alguns dos quais foram transformados em
séries populares de anime [como são chamados dos desenhos animados no Japão,
acréscimo meu}, mas também pesquisa e escreve extensivamente sobre yōkai. Ele
também publicou vários catálogos ilustrados de yōkai que lembram explicitamente
o trabalho de Toriyama Sekien cerca de duzentos anos antes. De muitas maneiras,
na verdade, o fenômeno yōkai fecha o círculo com o trabalho de Mizuki: como
Sekien, ele explora a mídia popular de seu tempo enquanto cuidadosamente pisa a
linha entre o entretenimento comercial e o modo enciclopédico. Claro, a
comparação Sekien-Mizuki pode ser feita apenas até agora, como os contextos
históricos e culturais radicalmente diferentes de os períodos meados de
Tokugawa e final do Showa dotam seu yōkai de funções e significados distintos”
(tradução livre de “For almost anybody who grew up in postwar Japan, the
word yōkai conjures up an image created by Mizuki Shigeru (b.
1922). Mizuki not only produces manga, some of which have
been made into popular television anime series, but also researches and writes
extensively on yōkai. He has also published numerous illustrated yōkai catalogs
explicitly reminiscent of the work of Toriyama Sekien some two hundred years
earlier. In many ways, in fact, the yōkai phenomenon comes full circle with Mizuki’s
work: like Sekien, he exploits the popular media of his time while carefully
treading the line between commercial entertainment and the encyclopedic
mode..Of course, the Sekien-Mizuki comparison can be taken only so far, as the
radically different historical and cultural contexts of the mid-Tokugawa and
late-Showa periods endow their yōkai with distinct functions and meanings”)
Figuras 1 e 2: yōkai
desenhados por Mizuki. A data é atribuída ao ano de 1974. Fonte da imagem:
http://monsterbrains.blogspot.com/2009/11/shigeru-mizukis-yōkai-pages-scanned.html
Uma das versões do Menino-demônio, Saishinban Akuma-kun 最新版悪魔くん (em português seria algo como O Último Menino-demônio ou A última versão do Menino-demônio), de 1988 a 1990, será aqui objeto de interesse. Essa versão é possível de ser encontrada hoje em dia, por exemplo, em uma versão única, em japonês, que reúne três volumes lançados separadamente em um momento anterior. Também é uma das versões de maior sucesso, tendo sido transposta para os jogos eletrônicos em diferentes plataformas. Tal como nas versões anteriores, Akuma-kun é o apelido do protagonista da trama. Em Saishinban Akuma-kun o menino-demônio é Shingo Umoregi 埋 れ 木 真 吾. Ele recebe essa alcunha em virtude do seu interesse pelos yōkai. Na trama, o Dr. Fausto acredita que Shingo é uma espécie de escolhido, um Messias, que aparece uma vez a cada dez mil anos para trazer definitivamente a paz ao mundo. Aqui há ainda elementos messiânicos envolvidos e até um substrato de matriz judaico-cristã sendo empregados no enredo, mas servem apenas como pano de fundo para a trama. Para alcançar a paz no mundo, é ensinado ao jovem Shingo a capacidade de invocar criaturas sobrenaturais, para serem seus apóstolos. Basicamente este é o enredo das várias versões da série, nos quadrinhos e desenhos animados. Ao invés de focar no personagem principal ou nesses elementos referentes ao imaginário messiânico ocidental (como a figura de um Messias e apóstolos), nosso texto busca refletir sobre um outro personagem da série. Esses elementos não são negligenciáveis, mas para desenvolvê-los melhor seria necessário um espaço maior, mas quem quiser se sinta à vontade para desenvolvê-los por conta própria. Apenas não se esqueça de referenciar esta reflexão. Para este texto, nossas considerações recaem especificamente sobre o personagem batizado na trama como Saci Pererê, ou Sashiperere como é creditado.
A princípio,
pode ser inusitada a presença de um Saci, o personagem do folclore brasileiro,
em uma trama japonesa de criaturas sobrenaturais. Todavia, essa escolha, longe
de ser inusitada, tem uma razão de ser e traz à tona aspectos que merecem
atenção. Estamos diante de uma operação que envolve a apropriação, circulação e
ressignificação de um elemento externo à cultura japonesa, mas que acaba sendo
integrado dentro do universo simbólico do folclore japonês. Aqui é possível
perceber como determinados simbolismos
podem ser edificados sobre as ruínas de edifícios simbólicos precedentes e como
esses materiais podem ser empregados para preencher as fundações de novos
templos. Notadamente, recorremos aqui a uma premissa castoriadiana (1982.
p.147) para estabelecer conexões entre imaginários sociais distintos (no caso,
o do folclore japonês e o do nosso). As imagens abaixo nos permitem visualizar
a integração do Saci ao universo de criaturas japonesas:
Figura 5: Capa da edição #3 destacando o protagonista e seus apóstolos.
Fonte: MIZUKI, Shigeru. Saishinban Akuma-Kun #1-3 最新版 悪魔 (ん (1-3巻 全巻), Tokyo: Kodansha, 1988-1990.
O pesquisador de cultura pop japonesa Rafael Machado Costa, editor independente da Kaijuu Editora, nos lembra de uma aparição bastante pontual de um saci-pererê em um quadrinho anterior de Mizuki. Trata-se de Yuki-hime-chan e GeGeGe no Kitarō (雪姫ちゃんとゲゲゲの鬼太郎), publicado de 1980 a 1981 (2020). Todavia, na série publicada no semanário Comic BomBom, da Kodansha, de dezembro de 1988 a abril de 1990, o Saci de Mizuki adquire maior destaque.
Algumas características do Sashiperere são semelhantes às do personagem brasileiro, mas pensadas conforme a perspectiva de um japonês. Assim como o nosso personagem, Sashiperere apresenta uma diminuta estatura e pele negra. Suas feições negras são apresentadas através de um rosto arredondado, pelos lábios grossos que estão sempre acompanhados do característico cachimbo e pelo tom de pele acentuadamente mais escuro comparado ao dos demais yōkai.
O nosso Saci usa
um gorro vermelho. Já o de Mizuki apresenta uma outra tonalidade (no desenho
animado japonês a carapuça é apresentada como roxa com a borda avermelhada. Já
nas capas das edições do mangá, que costumam ser coloridas, as cores tendem a
variar). O Sashiperere de Mizuki usa uma camisa manga longa com bolinhas. Já o
nosso Saci tende a ser representado sem vestimentas e alguns casos, usando
apenas um short geralmente vermelho para cobrir sua genitália. Vale
lembrar que além da versão mais popularizada por um Monteiro Lobato no livro “O
Saci-Pererê: resultado de um inquérito” ou nas aventuras e desventuras do
“Sítio do Pica-pau Amarelo”, há outras variantes - conforme a historiadora
Carla Anastasia em seus textos sobre o Saci como uma alegoria do Sertão e uma
figura mestiça ou ainda Câmara Cascudo, em suas estudos folclóricos que cobriam
variações do Saci do norte ao sul do país (2002). Voltando às comparações entre
o Sashiperere e o Saci brasileiro: Ambos aparecem com um cachimbo. Outro ponto
em comum entre o Saci brasileiro e o Saci do mangá é ter apenas uma perna.
Na animação japonesa, lançada três meses após a serialização, o Sashiperere apresenta as duas pernas. Não há elementos consistentes até o presente momento para explicar o porquê dele ser apresentado com duas pernas e não apenas uma. A imagem abaixo apresenta o Saci do anime, um dos 11 apóstolos de Akuma-kun:
Independentemente
de ter apenas uma perna no mangá e as duas pernas no anime o Sashiperere consegue produzir ao redor de si um tornado e
com ele gerar rajadas de vento de alta velocidade, que por vezes, usa contra os
inimigos, como é possível observar na imagem abaixo:
Figura 9: Sashipere demostrando seu poder. Imagem disponível em: https://twpro.jp/Saciperere_
No mangá se o cachimbo lhe é retirado Sashiperere se torna um bebê. Isso muda consideravelmente as origens dos poderes do Saci, que em nossa cultura tem como ponto fraco a carapuça. Na versão que foi consolidada por Monteiro Lobato, basta tirar o gorro do Saci para que ele perca a invulnerabilidade. É mostrado ainda que ele é uma criatura sobrenatural proveniente do Brasil e que adora jogar futebol. Notadamente, aqui vê-se uma estereotipia em torno do Brasil. O Saci de Mizuki é apresentado como o décimo primeiro de 12 apóstolos.
Uma questão que se coloca é como Mizuki teve contato com o nosso Saci. Talvez seja mais plausível tentar compreender como o autor se vale desse repertório e menos estabelecer uma origem taxativa. Mais que simplesmente identificarmos a referência que o roteirista se vale para construir o personagem, devemos perceber em que medida ele a modifica. Em outras palavras, qual é a rede de referências que ele integra esse elemento de outra cultura e o que resulta disso. É sabido que Mizuki, além de mangaká, foi autor de vários livros que tratavam não apenas dos Yōkai, mas de figuras sobrenaturais de outros países. Certamente, em suas pesquisas sobre personagens do folclore ele deve ter lido algo a respeito do nosso Saci ou teria conhecimento dele através de japoneses ou descendentes que passaram pelo Brasil. Figuras como o japonês Ypê Nakashima vieram para o Brasil e em produções no campo artístico/midiático recorreram às figuras do folclore brasileiro (Ypê, no caso, foi autor da animação brasileira Piconzé). Talvez seja possível estabelecer que figuras como o Saci, a Cuca e outras da cultura popular brasileira soem familiares aos nipônicos, cuja cultura é permeada pelo Yōkai.
Sobre os estudos de Mizuki sobre folclore talvez a mais
acessível e conhecida de suas obras seja a Enciclopédia Yōkai (Yōkai
Daihyakka 水木しげる
妖怪大百科). Em outras publicações de Shigeru
Mizuki não há apenas monstros de todas as regiões do Japão, mas figuras
sobrenaturais chinesas e coreana. Em vida ele chegou a publicar uma Enciclopédia de
fantasmas chineses (lançada em 1990 pela Tokyo Do Publishing). Além de livros mais centrados nas figuras japonesas, como Zusetsu Nippon Yokai
Taikan (em tradução livre, Enciclopédia
Ilustrada de Yokai japoneses, 2007), Mizuki foi autor de estudos comparativos
entre os yōkai e personagens fantásticos dos contos de fada de tradição
europeia, o que mostra que essas representações que circulavam em um nível
internacional eram de interesse de Mizuki. Nos quadrinhos de Mizuki também era
comum os yōkai aparecem ao lado de monstros como Drácula, Frankenstein,
lobisomens, bruxas, múmias, vampiros de diferentes nacionalidades (em Kitarō
há o La Seine, um vampiro francês) e outras criaturas sobrenaturais.
Em Kitarō no Sekai Obake Ryokō (Tour Fantasma Mundial de Kitarō),
publicado ao longo de 1976 pela Futabasha o protagonista e seus companheiros
viajam pelo mundo e encontram desde yōkai soviéticos como Vodyanoy (na
mitologia eslava, um espírito vingativo das águas) até Chinpo, uma criatura do
sudeste asiático. Há passagens pelo Quênia, no capítulo “Vodum”, em que há um
destaque para uma entidade apresentada como africana.
Figura
10: Página da versão colorida de Tour
Fantasma Mundial de Kitarō, de 1976. Nela vemos a representação de um yōkai
do sudeste asiático, revelando um interesse anterior de Mizuki por criaturas
sobrenaturais de outros países. Fonte da imagem: https://tinyurl.com/y2uwp968
Figura 11: Vodum ou Voodoo, um yōkai queniano, criatura sobrenatural que aparece no mangá Tour Fantasma Mundial de Kitarō, de 1976.
Como
explicitamos, é possível atribuir a esses personagens estrangeiros – dentre os
quais, está o nosso Saci – a condição de yōkai. Da mesma forma que os yōkai japoneses o nosso
Saci-Pererê é uma criatura sobrenatural, não podendo ser classificada nem como
boa, nem como mau. Obviamente na cultura popular há menções aos yōkai que
possam ser mal-intencionados, da mesma forma que o Saci brasileiro pode ser igualmente
malvado, dependendo da situação. Todavia, é necessário orientar o entendimento
fugindo de maniqueísmos. As
particularidades dessa apropriação e conversão do nosso Saci Brasileiro em um yōkai nos colocam a necessidade de
compreender as diferentes conexões e possíveis trocas entre diferentes
culturas, situadas em pontos distintos do planeta, além da importância de
examinar objetos de pesquisa dentro de uma escala mais global. Ao pensar no Saci yōkai estamos
diante de um exemplo ou objeto que
transcende a esfera local, nacional, regional, interconectando nossa cultura ao
universo de referências japonesas. Deste modo, ao lidar com este personagem
brasileiro imaginado como integrado ao imaginário social japonês, devemos
estabelecer premissas e perspectivas mais amplas, percebendo como circulam em
nível transnacional certas representações.
Referências biográficas
Márcio dos Santos Rodrigues é Doutorando em História pelo
Programa de Pós-Graduação em História Social pela Universidade Federal do Pará
(UFPA), na linha de pesquisa Arte, Cultura, Religião e Linguagens/Bolsista
Capes. Mestre em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), na
linha de pesquisa 'História e Culturas Políticas' (2011) e licenciado em
História pela mesma instituição federal (2007). Foi entre os anos de 2018 e
2020 professor Substituto do Curso de Licenciatura Interdisciplinar em Estudos
Africanos e Afro-Brasileiros da Universidade Federal do Maranhão, sendo
responsável por disciplinas como 'Oriente Médio, Ásia e Oceania'. Desenvolve
pesquisas no campo da História Global e dos estudos das Histórias em
quadrinhos. E-mail: márcio.strodrigues@gmail.com
Referências bibliográficas
ANASTASIA, Carla
Maria Junho. Saci-pererê, um mito sertanejo?. Revista Nossa História, Rio de Janeiro, v. 6, p. 40-44, 2004.
ANASTASIA, Carla
Maria Junho. Saci-Pererê: uma alegoria mestiça do sertão. In: PAIVA, Eduardo
França; ANASTASIA, Carla. (Org.). O trabalho mestiço: maneiras de pensar e
formas de viver. 1ed.São Paulo: Annablume, 2002, v. 1, p. 379-392.
CASCUDO, Luís da
Câmara. Geografia dos Mitos
Brasileiros. 2. ed. São Paulo: Global, 2002.
CASTORIADIS,
Cornelius. A instituição imaginária da
sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
COSTA, Rafael Machado. Antes da
Floresta Gegege: 'Hakaba Kitarou' e o despertar do sobrenatural nos quadrinhos
japoneses. Ilha Kaijuu, 2020 (Artigo online). Disponível em:https://ilhakaijuu.com/2020/02/20/antes-da-floresta-gegege-hakaba-kitarou-e-o-despertar-do-sobrenatural-nos-quadrinhos-japoneses/. Acesso em: 20/08/2020.
FOSTER, Michael Dylan. Pandemonium
and Parade: Japanese Monsters and the Culture of Yōkai.
Berkeley: University of California Press, 2009.
FOSTER, Michael Dylan. The Book of Yōkai: Mysterious creatures of japanese folklore. Berkeley: University
of California Press, 2015.
KITARŌ|GEGEGE NO KITARŌ WIKI| FANDOM (site):https://gegegenokitaro.fandom.com/. Último acesso em: 07/09/2020.
MIZUKI, Shigeru.
Kitaro. Montreal, Canada: Drawn
& Quarterly, 2013.
MIZUKI, Shigeru.
Saishinban Akuma-Kun #1-3 最新版 悪魔くん (1-3巻 全巻),
Tokyo: Kodansha, 1988-1990.
MIZUKI, Shigeru.
Zusetsu Nippon Yokai Taikan.
Tokyo: Purasu Arufa, 2007.
Em primeiro lugar gostaria de parabenizar pelo trabalho, e por apresentar a nós leitores uma ressignificação de um personagem do folclore brasileiro para se inserir no universo dos Yōkai, algo que para mim era desconhecido. Quando visualizei o título do seu trabalho imediatamente tive o interesse de ler, em virtude dos temas que estão presentes em seu título que fizeram parte da minha infância, pois, cresci assistindo Sitio do Pica Pau Amarelo e Yu Yu Hakusho. Essas duas produções culturais do Brasil e do Japão a seu modo são reflexo de suas manifestações populares e míticas. Logo, imaginei que apropriação feita pelos japoneses do saci faria sentido dentro do universo dos Yōkai. Todavia, após a leitura do seu texto o que mais me chamou atenção na sua escrita, foi o fato do Saci quando representado em um Anime possui as duas pernas. Algo que me lembrou a falta de diversidade na cultura Japonesa, um dos temas discutidos pelo longa metragem em animação Koe no Katachi. Através desse filme podemos identificar como esse assunto é pouco abordado pelas mídias japonesas o que acaba refletindo nos animes, pois, dificilmente vemos em um anime um personagem com algum tipo de deficiência, principalmente pela falta de um membro. Dessa maneira, na sua opinião a representação do Saci para os animes sofre influência dessa necessidade de representar sujeitos sadios e dotados de todas suas capacidades motoras, como referencial de um modelo de normalidade?
ResponderExcluirRonyone de Araújo Jeronimo
Obrigado pelos comentários, Ronyone. No que se refere à opção do anime Saishinban Akuma-kun 最新版悪魔くん de caracterizar o saci com duas pernas, confesso que no momento, no estágio atual da minha pesquisa não disponho de elementos para afirmar categoricamente se há alguma relação com uma possível falta de diversidade nas animações. Não sei se ajuda compreender, mas o próprio autor do mangá, o Shigeru Mizuki, não poderia ser considerado um sujeito sadio em todas as suas capacidades motoras (expressão que aqui tomo de empréstimo). Ele perdeu um dos braços durante o período que esteve no exército japonês. Ele perdeu o braço esquerdo e era canhoto. Sendo assim teve que aprender a desenhar com o braço direito, que não era o dominante. Talvez tenham colocado o saci com duas pernas para não ter que explicar ao público japonês consumidor do anime do contexto dos anos 1980 as razões pelas quais o saci perdera uma das pernas. São apenas hipóteses de pesquisa que espero futuramente responder.
ExcluirP.S: O Saci brasileiro no século XIX tinha duas pernas também e era mais velho. Não era essa figura brincalhona como vemos em Monteiro Lobato.
Agradeço desde já pela leitura do meu texto.
Márcio dos Santos Rodrigues
Obrigado Márcio por me responder, e por trazer ainda mais informações que eu desconhecia desse universo. Desejo sucesso na sua pesquisa.
ExcluirRonyone de Araújo Jeronimo
Parabéns pelo texto que ficou muito bom, os aspectos comparativos entre os youkais com demônios do imaginário ocidental realmente me parecem bem complicados, tendo em vista que no Japão os youkais tendem a não representar de fato uma caracteristica maniqueísta puramente voltadas para o mal, como possam ser associados os demônios temidos no ocidente dotados dos elementos culturais do cristianismo. Tendo em vista essa premissa, eu gostaria de saber qual seria a relação do pvo japonês com estes eres sobrenaturais do seu folcrore, eles são temidos, respeitados, reverênciados?
ResponderExcluirAfranio Junior de Melo Barros
Afranio, obrigado pela leitura do texto.
ExcluirRealmente uma das premissas do texto é estabelecer que não é possível ou respeitoso comparar aspectos da cultura popular japonesa com repertórios ocidentais, nem pensar na dimensão em torno do sobrenatural no Japão com equivalente aos elementos de um imaginário cristão. Daí a dificuldade de traduzir na nossa cultura o termo Akuma como demônio ou mesmo yokai como traduzimos no Brasil. No que se refere à relação do povo japonês com essas figuras sobrenaturais há um elemento que é de base religiosa, pelo menos da forma como os yokai são configurados. A base esses personagens está no xintoísmo e no budismo.
O Rafael Machado Costa no texto que escreveu sobre a relação do Mizuki com os yōkai fala do xintoísmo ter servido de base para a ideia de que sujeitos "podem agir como espíritos guardiões ou divindades protetoras de uma região, atividade ou grupo social". Acrescentaria aspectos do budismo. Há yōkai como o Bakeneko, que são representados visualmente como uma figura de um gato monstruoso, geralmente são vistos como maléficos. Todavia, dependendo da situação, podem ser protetores, extremamente fieis. Há vários relatos disponíveis sobre monges terem sido protegidos por Bakenekos. Até mesmo um Kappa (河童), que é um figura temida que habita rios e pântanos, ser for cumprimentado com aquele gesto de reverência japonesa se sentirá obrigado a curvar também a cabeça. Então são figuras que representam aspectos contraditórios e não podem ser enquadrados dentro dos nossos rótulos ocidentais.
Há sim reverência aos yōkai. É possível perceber a figura dessas criaturas sobrenaturais até hoje espalhadas em santuários, castelos e diferentes locais pelo Japão. São um aspecto muito relevante para a cultura japonesa.
Novamente agradeço pelo retorno e pela leitura.
Márcio dos Santos Rodrigues
Parabéns pelo ótimo texto. O Saci me encanta, e sua escrita foi muito bem articulada. Por gentileza, gostaria que abordasse mais sobre o papel do personagem Sashiperere no roteiro da obra citada... Quais são as ações dele? Qual é no lugar dele na trama?
ResponderExcluirNa trama o Sashipere サシペレレ de Mizuki é o décimo primeiro dos 12 apóstolos do Akuma-kun (lembrando que apóstolo aí não tem o mesmo significado religioso que percebemos em nossa cultura). Há nele também uma certa estereotipia sobre o Brasil, já que o Saci é identificado como sendo brasileiro e é um personagem que adora futebol. Há um aspecto cômico, mas é uma narrativa também de aventura. Na trama ele é convocado, assim como os demais apóstolos, para ajudar o Akuma-kun a enfrentar criaturas maléficas. Vou acrescentar aqui o link da abertura do anime para que você veja como o Saci atua e é totalmente integrado ao universo das criaturas sobrenaturais japonesas: https://youtu.be/et-JltfVvB4
ExcluirAgradeço pela pergunta.
Márcio dos Santos Rodrigues
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ResponderExcluirOlá, Márcio dos Santos Rodrigues, primeiramente, parabéns pelo texto e pesquisa.
ResponderExcluirGostaria de saber se os Youkais entram num aspecto religioso dentro da cultura nipônica, ou apenas como lendas populares, como o saci por exemplo? E se entram num aspecto religioso, como são inseridos e qual seu papel dentro da religião? - Bruno Henrique Alves da Silva
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ExcluirOlá, Bruno. Os Yōkai estão inseridos em sistemas de crença no Japão. Sendo assim, há neles um aspecto religioso que difere do nosso folclore (embora algumas narrativas aqui no Brasil tenham uma fundamentação de crenças indígenas. Falando isso pelo fato de já ter trabalhado com grupos indígenas e narrativas que eram para nós "lendas" eram para eles elementos religiosos). Voltando aos Yōkai: Há registros deles nas crenças dos povos originários do Japão e eles representavam entidades relacionadas ao meio natural, forças com as quais o ser humano tem que lidar. Representam também um aspecto de imprevisibilidade. Estão presentes no cenário do xintoísmo e também no budismo. No caso do budismo há elementos indianos. Geralmente é essa a posição de estudiosos de Yōkai com relação ao papel deles nas religiões e religiosidades no Japão.
ExcluirObrigado pela leitura do meu texto e pelas perguntas.
Márcio dos Santos Rodrigues