Sofia Alves Cândido da Silva

 

ELEMENTOS DA CULTURA MONGOL DESCRITOS EM EMBAIXADA A TAMERLÃO [1406]


 

A obra Embaixada a Tamerlão

O livro Embaixada a Tamerlão é uma obra castelhana, redigida por Ruy González de Clavijo em 1406. Trata-se de um livro que descreve a viagem realizada pelo próprio autor, junto a uma embaixada, da qual ele fazia parte. A comitiva, que havia sido formada por Enrique III [1390-1406], soberano de Castela e Leão, tinha o objetivo de encontrar e contatar Tamerlão [1386-1405], imperador oriental.

Conforme apresentado em Embaixada a Tamerlão, os membros nomeados para compor a embaixada foram: Ruy González de Clavijo, Frade Alonso Páez de Santa María e Goméz de Salazar. Estes três homens estavam acompanhados de mais quatorze ajudantes, designados para auxiliá-los no transporte dos pertences e Mohamad Alcagi, um dos subordinados de Tamerlão e estava regressando à terra de seu senhor.

A presença de Mohamad Alcagi na embaixada elaborada por Enrique III [1390-1406] se deve, pois, em um primeiro momento, o soberano castelhano enviou dois cavaleiros ao território em que seria realizada a Batalha de Ankara. Sendo que este embate ocorreu entre Bajazeto I [líder turco] e Tamerlão [líder mongol].

Os dois enviados de Enrique III, Payo Gómez de Sotomayor e Hernán Sánchez de Palazuelos, após a vitória do líder mongol, iniciaram uma conversa com o Imperador Timúrida, solicitando que este os acompanhasse no regresso à Castela. Devido ao cansaço, decorrente de um longo período de batalhas e conquistas, Tamerlão decidiu retornar aos seus domínios. Contudo, decidiu enviar a Enrique III diversos presentes e uma carta, sendo que o transporte desta foi designado à Mohamad Alcagi.

Após tal decisão, os três homens retornaram à Castela e se encontraram com Enrique III [1390-1406], para informar-lhe dos ocorridos na Batalha de Ankara. Posteriormente, ao tomar conhecimento dos acontecimentos, o rei castelhano se interessou em estabelecer contatos diplomáticos com Tamerlão [1386-1405]. Uma vez que, a partir da vitória dos mongóis no enfrentamento contra os turcos, o soberano de Castela e Leão compreendeu o poderio militar daquele povo. Junto a este fato, também havia o medo da ameaça que os turcos representavam para o Ocidente cristão.

Por essas razões, Enrique III ordenou a formação de uma embaixada, com a finalidade de enviar presentes e uma carta em resposta à Tamerlão, na tentativa de organizar uma união entre cristãos e mongóis, para que pudessem agir em conjunto em um possível enfrentamento contra os turcos. Dessa forma, foi conformada a comitiva e a viagem, descritas em Embaixada a Tamerlão.

O título da obra se deve ao primeiro objetivo da viagem, que seria o de encontrar Tamerlão. No início da empreitada, os viajantes tem a informação de que o líder mongol está em Qarabágh e ficaria hospedado durante o inverno, pois eram “[...] campos planos, e com muita grama, e é uma terra muito quente, e não há neve e se ela cair, se desfaz logo, e por esse motivo o Senhor hibernava ali todos os anos [...]” [GONZÁLEZ DE CLAVIJO, 2003, p. 104, tradução nossa]. Contudo, ao chegarem em Arsinga, recebem a notícia de que o imperador já havia se retirado do local inicial e estava indo em direção a Samarcanda. Sendo que esta cidade tornou-se destino final da comitiva castelhana. Dessa forma, os viajantes, por estarem a procura de Tamerlão, promovem uma “Embaixada a Tamerlão”.

Portanto, a redação da obra, realizada por Ruy González de Clavijo, descreve a viagem da embaixada, a qual ocorreu entre 1403 e 1406. Para fins de análise, o livro pode ser divido em três etapas: o trajeto de ida dos viajantes, realizado tanto por vias navegáveis e terrestres; a descrição da cidade de Samarcanda; o trajeto de regresso, com menos detalhes que o percurso inicial, uma vez que, o itinerário traçado é semelhante ao percorrido no começo da empreitada.

A viagem, de cunho diplomático, proporcionou a redação de um livro de viagens e devido à localidade frequentada pelos viajantes, nos permite analisar alguns elementos da cultura mongol, os quais foram descritos por Ruy González de Clavijo em sua obra.

 

Cultura mongol: Embaixada a Tamerlão

Os mongóis, um dos povos que têm suas origens nas estepes asiáticas, sendo que são comumente associados ao seu caráter nômade e à sua relação com os cavalos. Além disso, normalmente também são relacionados a um de seus líderes, Gengis Khan, devido às expansões territoriais promovidas por ele, as quais permitiram no século XIII a conformação do que denominamos de Império Mongol.

Tamerlão se insere nesse contexto, pois foi um imperador mongol, que exerceu sua liderança entre 1386 e 1405, ano de sua morte. De acordo com Peter Jackson [2005], o líder mongol pertencia à tribo dos Barlas e seu pai era relacionado à linhagem do Canato de Chagatai. Os Canatos podem ser definidos como uma organização política liderada por um Khan, que seria o “líder tribal” de um povo. O Canato Chagatai era um dos quatro “reinos” organizados pelos herdeiros de Gengis Khan, após a sua morte.

Devido a essa conexão com o Canato de Chagatai, suas origens e seu crescente poderio militar – sendo este relacionado à cultura local, pois para conquistar a liderança era necessário empreender batalhas e ganhar guerras –, Tamerlão elaborou um discurso, no qual se apresentava enquanto sucessor de Gengis Khan e de seu Império. Por essas razões, podemos associar tanto ele, quanto seu governo, a algumas das práticas culturais características dos mongóis.

Portanto, com o objetivo de observarmos elementos culturais, nos atentaremos a primeira e segunda etapa do livro Embaixada a Tamerlão. De acordo com o que foi exposto anteriormente, estas partes da obra dizem respeito ao momento em que Ruy González de Clavijo descreve o trajeto de ida e a estadia dos viajantes nas proximidades de Samarcanda, capital do Império Timúrida.

Dessa forma, conforme comentado, a ligação dos mongóis com os cavalos apresenta-se como uma das características culturais amplamente comentadas e observadas, tanto por pesquisadores atuais, como por povos e culturas do Ocidente Medieval. Tal fato se deve, pois, a expansão promovida por Gengis Khan colocou em contato duas maneiras de guerrar diferentes. A primeira, diz respeito à prática realizada pelos cristãos e a segunda, concerne aos modos de batalha dos mongóis.

De acordo com Márcia Regina Busanello [2012], devido à habilidade desses povos orientais com os cavalos e por conta do manejo do arco e flecha, era possível que eles cavalgassem e lutassem ao mesmo tempo, fazendo com que os guerreiros fossem ágeis e rápidos. Além disso, não utilizavam armaduras pesadas. Tal destreza faz com que eles sejam diferentes dos cristãos, pois, devido ao peso da armadura e ao modo de batalha, os ocidentais eram lentos no campo de batalha. Para exemplificarmos essa diferença tática, podemos citar um dos enfrentamentos entre esses dois povos, em 1241, no qual o exército mongol destruiu as forças combinadas dos cavaleiros da Ordem Teutônica e de soldados polacos [SIMÕES & INFANTE, 2015]. 

Desse modo, podemos observar a presença dos cavalos no cotidiano dos povos mongóis na obra Embaixada a Tamerlão. Uma vez que, Tamerlão sendo um líder turco-mongol, fomentou o uso de equinos nos territórios dominados por ele. Além disso, a presença de cavalos na região se deve à cultura dos povos das estepes, já que, mesmo sem o domínio de Tamerlão, eles usavam cavalos.

Sendo assim, em diversos momentos em que os viajantes chegam às diferentes áreas dominadas por Tamerlão, por serem viajantes nobres e estarem acompanhados de um representante do líder mongol, lhes eram oferecidos cavalos para transporte. Podemos visualizar tal fato no excerto abaixo:

“Outro dia sábado, dia três do mês de Maio, partiram daqui, e a terça hora foram em uma aldeia, e foram recebidos muito bem, e lhes deram muita comida e cavalos para que pudessem ir e para que carregassem seus pertences e a noite foram dormir em outra aldeia, onde lhes deram muita comida e cavalos [...] e quando chegavam em qualquer lugar, quem os recebia era o líder local e o embaixador de Tamerlão ordenava que trouxessem comidas e cavalos e homens que os servissem [...]” [GONZÁLEZ DE CLAVIJO, 2003, p. 39-40, tradução nossa].

A associação dos mongóis aos cavalos muitas vezes fica apenas no plano das guerras, contudo, estes animais também eram utilizados para a alimentação. Seu leite era consumido, assim como sua carne. Ruy González de Clavijo nos descreve que em uma das festas foram servidas muitas comidas aos convidados e, dentre estas, estava a carne de cavalo. Além disso, a partir da fermentação do leite da égua, era possível produzir uma bebida alcóolica, denominada airag ou kumiss, sendo esta a única bebida alcóolica disponível no período pré-imperial [DASHDONDOG, 2016].

Com isso, podemos destacar outro ponto cultural dos mongóis, que é o consumo do álcool. Além do kumiss, após a expansão territorial e o contato com outros povos, como os islâmicos e chineses, passaram a ser consumidas diferentes tipos de bebidas, como a cerveja de arroz, o hidromel e até mesmo o vinho tinto.

De acordo com Bayarsaikhan Dashdondog [2016], não só beber era comum, mas também o ato de ficar bêbado, os quais não eram praticados apenas em uma ocasião, mas em várias. Dentre estes momentos, podemos observar que nas cerimônias nobres beber era parte da tradição. Ruy González de Clavijo nos descreve uma ocasião, na qual está ocorrendo uma celebração e nos redige a respeito de como era o ato de beber dos mongóis.

“E quando os ditos embaixadores chegaram lá, eles estavam bebendo, e seus modos de beber eram estes: um velho cavaleiro parente do Senhor, e dois outros jovens, seus parentes, que estavam lá, serviram [...] as Donas desta forma: eles tinham em suas mãos dois panos brancos como mortalhas, e aqueles que derramavam o vinho, colocavam o vinho em pequenas taças de ouro e as colocava em pequenos pratos de ouro; e os que serviram o vinho foram na frente, e os que derramavam atrás, com as taças colocadas nos pratos [...]. E não pensem que este beber durou pouco, mais muito tempo, e sem comer [...]. E a esta festa tão falada veio Caño, esposa do Senhor Tamerlão, e às vezes bebiam vinho, às vezes uma mistura de leite [...]; E a bebida foi tanta que homens bêbados caíam [...]: e isso eles entendem como uma atitude nobre, aqui entendem que não seria prazeroso nem alegre um lugar que não houvesse bêbados” [GONZÁLEZ DE CLAVIJO, 2003, p. 82-83, tradução nossa].

Por fim, destacamos as moradias desses povos, as quais deveriam estar em sincronia ao seu caráter nômade. Sendo assim, os mongóis se abrigavam em tendas de fácil construção e desmonte, denominadas ger ou yurt. Michael Burgan [2009] aponta que os gers eram redondos, feitos de madeira com panos de lã de ovelha, possuíam um buraco no centro para a luz passar e o chão era coberto por peles de animais. Segundo George Lane [2006], os gers ou yurts, além da característica utilitária, também representavam o status social de seu dono, sendo relacionado ao tamanho da tenda.

A obra Embaixada a Tamerlão também nos demonstra o uso dessas tendas, sendo que em uma destas ocasiões Tamerlão [1386-1405] havia organizado uma comemoração e convidado diversas pessoas, conforme exemplificado abaixo:

“[...] e nesse campo o Senhor ordenou que fossem armadas muitas tendas para si e para suas mulheres, e mandou que todo o seu exército, que estava espalhado por vários locais, que se juntassem todos ali, cada um em seu lugar, e colocassem suas tendas, e viessem ali com suas mulheres, para presenciarem as festas e casamentos que queria fazer. E após as tendas do Senhor serem armadas, cada um já sabia onde deveria colocar suas tendas, e em qual parte, desde o maior até o menor sabia o seu lugar, e como já sabiam, tudo ocorreu de maneira ordenada e sem barulho, e antes de três ou quatro dias foram armadas ao redor das tendas do Senhor aproximada mente vinte mil, e cada dia vinham mais de todas as partes” [GONZÁLEZ DE CLAVIJO, 2003, p. 78, tradução nossa].

Dessa forma, com os exemplos, fomos capazes de observar alguns elementos da cultura mongol, os quais foram descritos por Ruy González de Clavijo em Embaixada a Tamerlão. A partir do que foi exposto acima, podemos perceber que as fontes que narram as viagens de europeus ao Oriente nos apresentam diversas descrições acerca dos povos orientais. Por essa razão, é possível estudarmos a respeito de como os cristãos observavam os reinos e impérios à Leste da Europa. Tal análise deve ser realizada com cautela, já que, as descrições dos homens do medievo acerca do Oriente podem ser permeadas de pré-conceitos.

 

Referências

Sofia Alves Cândido da Silva é graduanda do quarto ano do curso de História na Universidade Estadual de Maringá [UEM] e membro do Laboratório de Estudos Medievais [LEM].

 

BURGAN, M. Empire of The Mongols. Nova Iorque: Chelsea House Publishers, 2009.

BUSANELLO, M. R. O Maravilhoso no Relato de Marco Polo. Dissertação [Mestrado em Letras] – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2012.

DASHDONDOG, B. Drinking Traits and Culture of the Imperial Mongols in the Eyes of Observers and in a Multicultural Context. Crossroads, 2016, p. 161-172.

GONZÁLEZ DE CLAVIJO, R. Embajada a Tamorlán. Buenos Aires: Editorial del Cardo, 2003.

LANE, G. Daily Life in The Mongol Empire. Londres: Greenwood Press, 2006.

JACKSON, P. The Mongols and The West: 1221 -1410. Routledge, 2005.

SIMÕES, A.; INFANTE, G. Introdução. In: CARPINI, G. P. História dos Mongóis aos quais chamamos Tártaros. Livros de Bordo, 2015, p. 1-3.

3 comentários:

  1. Oi, Sofia. Gostei bastante do teu texto. Eu honestamente desconhecia esse contato diplomático entre castelhanos e mongóis. Uma primeira pergunta seria como você entrou em contato com essa obra. Outra, Ruy González de Clavijo realizou outras viagens ou outros contatos diplomáticos com o Império Mongol? A Espanha chegou a estabelecer uma relação mais duradoura ou foi apenas essa visita?

    Agradeço antecipadamente,

    YARA FERNANDA CHIMITE

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    1. Sofia Alves Cândido da Silva9 de outubro de 2020 às 16:31

      Olá, Yara!

      A respeito da primeira pergunta, ao estudar sobre viagens e viajantes no medievo, Embaixada a Tamerlão é uma das obras "símbolo" deste período (Baixa Idade Média) em Castela, então diversos artigos e autores comentam sobre ela, sendo assim, foi a partir dessa leitura que eu entrei em contato com a obra.

      Já a respeito das demais perguntas, Ruy González de Clavijo não viajou mais enquanto embaixador, ficou apenas à serviço de Enrique III e, posteriormente, de Juan II. Além disso, o viajante também morreu alguns anos após seu regresso, em 1412.
      Sobre algum tipo de relação com os mongóis, não foram estabelecidos contatos duradouros, há relatos de viagens anteriores, como de Giovanni da Pian del Carpine (1245-1247), mas tanto nesta, quanto na viagem descrita em Embaixada a Tamerlão, os contatos com os líderes mongóis não resultaram em algum tipo de acordo duradouro.

      Agradeço a pergunta.

      Att.
      Sofia Alves Cândido da Silva.

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    2. Obrigada pela resposta e parabéns pela pesquisa!

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